
Boa parte da vibração da dança contemporânea no Rio Grande do Sul se deve à dedicação de coreógrafas que atuam como embaixadoras dessa linguagem cênica, criando espetáculos, incentivando o debate, formando profissionais e, acima de tudo, iluminando a cena com suas presenças. Entre elas, estão Eva Schul, Carlota Albuquerque e Jussara Miranda, responsável pela Muovere Cia. de Dança Contemporânea, que comemora 30 anos com uma programação de sexta (8) a domingo (10), no Theatro São Pedro e no Multipalco.
Uma das mais representativas companhias de dança do Estado — tendo se apresentado em 2018 no Mercado de las Artes Performativas del Atlántico Sur (Mapas), em Tenerife, nas Ilhas Canárias, e neste ano no Encuentro Internacional de Danza Fragmentos de Junio, em Guaiaquil, no Equador —, a Muovere tem sua história dividida em quatro fases, segundo Jussara.
A primeira foi em Cruz Alta, onde nasceu a companhia; a segunda foi marcada pela vinda da coreógrafa para Porto Alegre, em 1996; a terceira, nos anos 2000, teve uma evasão de bailarinos em busca de oportunidades no Exterior; e a quarta, a atual, é caracterizada por uma mudança no modelo de gestão: a Muovere funciona mais por meio de projetos de dança do que como grupo propriamente dito. Profissionais convidados orbitam em torno de um núcleo formado por pessoas-chave responsáveis pelo planejamento e pela produção.
— É da natureza da dança reinventar-se todos os dias — pontua Jussara. — Entre as estratégias que desenvolvemos, consta a de aproveitar o capital artístico, social e intelectual dos talentos envolvidos, bem como diversificar a oferta dos produtos a públicos diferentes, preservando a inovação, a memória, as temáticas críticas e a qualidade artística como fatores indissociáveis do conceito da companhia.
Convivência
Tendo montado espetáculos de destaque, como Baile à Fantasia (1994), Bild (2001) e 3 Motivos (2003), a Muovere apresenta na mostra comemorativa no São Pedro um retrato de seu atual momento, com os espetáculo Choking e R3sint0s (recriação de um trabalho encenado pela primeira vez em 1998 como Recintos), a intervenção urbana Desvio, que ocorrerá na faixa de segurança entre o teatro e o Palácio da Justiça, e dois workshops: um com Diego Mac, diretor artístico da Muovere e diretor da Macarenando Dance Concept, que falará sobre a relação entre dança e tecnologia (conceito trabalhado em Choking), e outro com Jorge Parra Landázuri, do Equador, que pretende inaugurar uma plataforma de intercâmbio entre iniciativas de dança do Rio Grande do Sul e de países da América Latina. Jussara conclui:
— Meus interesses vêm sendo afetados e transformados no compasso da minha experiência de vida e de convivência com meus parceiros. A dança se revela no dia a dia junto às vidas que a contornam. A chegada de artistas do circo, do teatro e das artes performativas contribuiu para extrapolar os limites do uso de apenas uma linguagem.
Muovere Cia. de Dança – 30 anos
SEXTA
- Workshop: Tecnologias de Informação e Comunicação na Criação, na Produção e na Construção de Identidades, de Públicos e das Memórias da Dança. Com Diego Mac (Brasil). Das 9h às 12h, na Sala de Oficinas do Multipalco. Ingressos: R$ 30. Inscrições até quarta-feira (6) pelo link bit.ly/muovere1.
- Intervenção urbana: Desvio. Com Annita Brusque, Denis Gosch, Didi Pedone e Juliana Rutkowski. Das 13h às 13h30min, na faixa de segurança entre o Theatro São Pedro e o Palácio da Justiça. Entrada franca.
- Encontro expositivo comentado: Dança e Internacionalização na América Latina, com Jorge Parra Landázuri (Equador). Das 15h às 18h, na Sala de Oficinas do Multipalco. Ingressos: R$ 30. Inscrições até quarta (6) por meio do link bit.ly/muovere2.
SÁBADO
- Espetáculo: R3sint0s. Com Didi Pedone, Roberta de Savian, Denis Gosch, Joana Amaral e Letícia Paranhos. Às 21h, no Theatro São Pedro. Ingressos: R$ 30, à venda no site teatrosaopedro.com.br e na bilheteria.
DOMINGO
- Espetáculo: Choking. Com Fellipe Resende, Luísa Dias Oliveira e Rafaela Machado. Às 18h, no Theatro São Pedro. Ingressos: R$ 30, à venda no site teatrosaopedro.com.br e na bilheteria.
Leia, a seguir, entrevista com a diretora-geral da Muovere, Jussara Miranda:
Jussara Miranda: "É da natureza da dança reinventar-se todos os dias"
Esta intensa programação celebra os 30 anos da Muovere, uma longa trajetória para qualquer grupo no Brasil. Durante esse período, de que forma a companhia conseguiu se reinventar para continuar relevante? Como se transformaram seus interesses como coreógrafa e diretora da cia.?
Na linha do tempo de 30 anos, a companhia passou por quatro fases distintas. A primeira, em Cruz Alta, onde nasceu a companhia, seguida da segunda, por conta da minha vinda para Porto Alegre em 1996, inaugurando o projeto Engenho da Dança. Neste período, operei com dois grupos: um jovem e iniciante em Cruz Alta e outro experiente em Porto Alegre, resultado da minha participação no Grupo Phoenix.
A terceira fase, anos 2000, foi marcada pela evasão dos bailarinos para o Exterior em busca de oportunidades. A recente e quarta é traçada por um modelo de gestão não mais de "grupo", mas de "projeto" em dança. Nele, vários elencos, profissionais e parceiros atuam como convidados, orbitando o núcleo da Muovere formado por pessoas-chave responsáveis pelo planejamento e produção.
É da natureza da dança reinventar-se todos os dias. Entre as estratégias que desenvolvemos, consta a de aproveitar o capital artístico, social e intelectual dos artistas envolvidos, bem como diversificar a oferta dos produtos a públicos diferentes, preservando a inovação, a memória, as temáticas críticas e a qualidade artística como fatores indissociáveis do conceito da companhia.
Enquanto diretora e coreógrafa da Muovere, meus interesses vêm se afetando e transformando no compasso da minha experiência de vida e de convivência com meus parceiros. A dança se revela no dia a dia junto às vidas que a contornam. A chegada de artistas do circo, do teatro e das artes performativas muito contribuiu para extrapolar os limites do uso de apenas uma linguagem.
Ainda falando sobre a longevidade da Muovere: como você descreve as dificuldades e as recompensas de resistir em tempos bicudos? Que estratégias de sobrevivência – financeira, artística e afetiva – vocês tiveram de empregar?
Creio que as dificuldades representam o "mantra" de quaisquer companhias de dança da cena livre atuantes no Brasil. Desde sempre, e ao mesmo tempo, as dificuldades dispararam as barreiras como as fontes de reinvenção.
Em tempos "bicudos", por exemplo, cito a recente extinção do Ministério da Cultura, seguida do desmantelamento de políticas públicas eficientes para o impulsionamento da sustentabilidade e de oportunidades de trabalho. A desvalorização da economia cultural deu-se em efeito cascata, afetando a cadeia produtiva do setor e o desenvolvimento social e econômico como um todo.
Em tempos de crise, a resiliência recompensa. Trata-se da capacidade da arte em resistir, combatendo as variações das circunstâncias políticas e lidando com as adversidades para superá-las.
Entre as nossas estratégias de sobrevivência, atentamos, primeiro, aos movimentos do mercado. Em segundo, dialogamos com circuitos, encontros e festivais locais, nacionais e internacionais. Em terceiro, focamos em instituições promotoras de arte e cultura e nos espaços teatrais sintonizados com a realidade de grupos da cena livre.
Artisticamente, agregamos valores ao aprimoramento e ao aperfeiçoamento das nossas escolhas artísticas, entre outros atributos, conceitos de sustentabilidade, horizontalidade e criação compartilhada. No que concerne aos laços afetivos, se renovam, atualizam e criam novas conexões valiosas, dia a dia.
Uma das mesas da programação trata da relação entre dança e tecnologia, e essa relação está materializada na montagem Choking, que faz uso intenso de vídeo e outros recursos. Quais são as novas fronteiras dessa inter-relação e como você pretende explorá-las nos próximos trabalhos da Muovere?
A relação entre a tecnologia e a dança despertou meu interesse por conta do Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, em Salvador, em 2002, com o espetáculo Pele, por Ivani Santana. Desde então, passou a iluminar as nossas pesquisas, a exemplo de Choking e Dancinfância, acolhendo a fusão de corpos inanimados e humanos no acesso a outras camadas da estética coreográfica e de conteúdos singulares, utilizando-se de câmeras de vigilância e projeção mapeada, em tempo real.
Em sua contemporaneidade, a relação entre dança e tecnologia é uma intervenção bastante recente na produção artística em dança, como a videodança, dança telemática e dança computador. Nosso objetivo é avançar no discurso, explorando possibilidades e desafios junto às futuras criações.
Outros espetáculos da mostra são Desvio e R3sintos (releitura de Resintos). São dois trabalhos que falam sobre pessoas e lugares. Poderia comentar brevemente sobre como foram as pesquisas para cada um deles?
Desvio é uma performance desenhada para a rua, que teve sua inspiração em movimentos espontâneos de transeuntes, pessoas comuns, de três bairros de Porto Alegre. Financiado pelo Fumproarte 2011, pelo Prêmio Klauss Vianna Funarte e Artes de Rua 2012, realizou mais de cem apresentações entre cidades do Rio Grande do Sul e de outros lugares do Brasil, alcançando o mercado internacional: o Mercado de Artes Perfomativas del Atlántico Sur (MAPAS), em Tenerife, nas Ilhas Canárias, e o Festival Fragmentos de Junio, em Guaiaquil, Equador.
Já Recintos, primeiro título 1998, teve sua pesquisa no Lar Santo Antônio de Porto Alegre. Em 2006, sob a direção de dramaturgia de Jezebel de Carli, no projeto Casa Bild, passou a chamar-se Re-Sintos, que, focando nos espaços de poderes, traduziu a figura do super-herói Homem-Aranha. Já em 2008, a obra tomou posse de "lugares" do senso comum, como elevador, academia, clínica estética, prostíbulo, entre outros, com pesquisa realizada no 3º Regimento de Cavalaria de Porto Alegre, observando os cavalos: manobras, encarceramentos, tratos e treinamentos, em metáfora à condição humana.
Em 2019, R3sint0s versa sobre os espaços, não mais sobre lugares, em condições não hegemônicas, tendo o "palco" como o reduto das possibilidades. Em cocriação com Didi Pedone, Denis Gosch, Joana Amaral, Roberta de Savian, Letícia Paranhos e Diego Mac, traduz sua quarta versão em seu modo de ver e sentir os espaços trilhados pela Muovere no percurso de 30 anos.
Quando se fala de um grupo de dança, estamos falando de pessoas. E muitas pessoas passaram pela Muovere, entre bailarinos, técnicos e outros parceiros. Qual é o segredo para o trabalho em grupo? Você vê a Muovere como um grupo em constante transformação ou tem a ideia de manter um núcleo estável?
São incontáveis as pessoas-artistas que assinam a obra da Muovere junto a sua trajetória, o que muito me orgulha. E graças a esse patrimônio social, intelectual e artístico, a Muovere conquistou o reconhecimento nacional.
Iniciei a Muovere com a uma visão de "grupo", ditado por encontros diários e em local previsto. Já hoje vivemos a companhia como um "projeto" em constante movimento na forma de um "rizoma", com suas camadas e pontos de explosão.
Quando, com quem, onde e por que os encontros acontecem segue um planejamento previsto de, no mínimo, um ano, exceto variáveis como festivais, mercados e encontros, que dependem da dinâmica dos editais.