Autor de dramas existenciais recheados com um humor ao mesmo tempo singelo e erudito, Jim Jarmusch é um dos cineastas mais cultuados da geração que transformou o cinema independente norte-americano em fonte de algumas das maiores preciosidades produzidas entre as décadas de 1970 e 1990. Depois de quase 10 anos de ausência no circuito brasileiro, ele voltou com tudo no muito bom Amantes Eternos (2013), que está disponível na Netflix, e no melhor ainda Paterson, que foi uma das sensações do Festival de Cannes de 2016 e que estreia nesta semana nas salas do país.
Diferentemente do longa anterior – e de grande parte de sua obra pregressa –, Paterson é um filme solar, que brinca com dualidades envolvendo o cotidiano mais comezinho e os sonhos mais transcendentais. Narra a história de um pacato motorista de ônibus (Adam Driver) que se distrai escrevendo poesias, cuja inspiração provém daquilo que observa no seu dia a dia. Ele se chama Paterson e vive em Paterson, New Jersey. Esse jogo de espelhos entre a sua identidade e a do lugar em que vive – e ao qual pertence – pode causar um estranhamento inicial, mas funciona como súmula das intenções de Jarmusch.
Todos os dias, Paterson, o homem, acorda, toma café da manhã, vai ao trabalho. Cumprimenta um colega e dá a partida no coletivo que dirigirá pelas próximas horas. No intervalo, vai a um parque observar uma queda d’água. De volta para casa, desfruta do jantar preparado por sua doce e ingênua mulher (Golshifteh Farahani), depois sai para passear com o cachorro, entra em um bar, sempre o mesmo, bebe uma cerveja e conversa com os amigos – também os mesmos, sempre. Entre a prisão e o conforto dessa rotina que raramente se altera, há os momentos dedicados à escrita, que ganham solenidade na narrativa devido ao uso da música incidental (composta pelo diretor junto ao seu parceiro Carter Logan) e a um recurso bastante utilizado quando se trata de valorizar a palavra – os versos grafados sobre a tela, tal qual o que se viu em O Livro de Cabeceira (de Peter Greenaway, 1996), entre outros filmes.
Os textos são na verdade de Ron Padgett. Pagam tributo à poesia de William Carlos Williams (1883 – 1963), um dos ídolos de Jarmusch – outro é William Blake, referenciado em Dead Man (1995), um dos longas do diretor dos quais Paterson, o filme, mais se aproxima. São poemas aparentemente simples, mas que, ao revelarem sua conexão com o real, evidenciam uma pulsação nem sempre perceptível à primeira vista. Não deixa de ser uma provocação do grande realizador responsável por Estranhos no Paraíso (1984), Down by Law (1986) e Ghost Dog (1999), entre outros títulos inesquecíveis. É como se perguntasse: o que exatamente você vê ao observar certas rotinas tidas como banais?
Para deixar tudo ainda mais instigante, Jarmusch escalou um casal de atores jovens "preso" a um cotidiano perfeitamente identificável como ultrapassado: a mulher do motorista não trabalha e o espera em casa, todas as noites, com o jantar preparado; distrai-se no dia a dia fazendo cortinas e outros utensílios domésticos; tem ambições de ser reconhecida socialmente vendendo cupcakes, mas também pensa em se lançar na música (tocando o violão que ganhou de presente do marido "que trabalha fora"). Nada, incluindo essa configuração familiar, se estabelece por acaso em Paterson.
São também os casos de alguns personagens secundários, a exemplo do japonês vivido por Masatoshi Nagase. O ator, que interpretara o forasteiro em busca de Elvis Presley em Trem Mistério (1989), também de Jarmusch, agora está à procura de se conectar com William Carlos Williams. Trata-se de alguém "de fora", mas sua presença, já no ato final, serve como o próprio espelho para o qual Paterson, o protagonista, olha-se buscando se reconectar com o que realmente importa.
É nesse jogo, entre o que está na superfície e o que se esconde por trás das aparências, entre o que se vê e o que a realidade mais banal não parece mostrar, que se configura Paterson. Parece simples, mas é um filme de uma riqueza absolutamente incomum.
PATERSON
De Jim Jarmusch
Comédia dramática, EUA, 2016, 118min.
Em Porto Alegre, em cartaz no Guion Center e no Espaço Itaú.
Cotação: ótimo.