Um dos mais prestigiados cineastas franceses da atualidade, Bruno Dumont deu um novo direcionamento a sua carreira depois da monumental e genial minissérie em quatro episódios O Pequeno Quinquin (2014), distanciando-se da narrativa austera, densa e mais naturalista de dramas como A Vida de Jesus (1997), A Humanidade (1999) e O Pecado de Hadewijch (2009). Em seu mais recente filme, Mistério na Costa Chanel (2016), o realizador retorna a temas constantes em sua filmografia – a violência social, os atritos entre classes e culturas diferentes, a confrontação moral e espiritual com situações extremas –, mas com uma embocadura menos hirta. Como em Quinquin, o longa em cartaz na Capital adota um tom mais farsesco e mesmo absurdo para contar a história de uma série de crimes cometidos em uma região da França distante das grandes cidades, cuja elucidação é menos importante do que observar o ácido painel desenhado de uma sociedade assentada em hipocrisias, pequenas grandezas e grandes mesquinharias. "Eu costumava trabalhar com um telescópio, agora eu trabalho com um microscópio", definiu Dumont sua comédia negra.
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Prêmio de melhor trilha sonora do Festival de Cannes do ano passado, Mistério na Costa Chanel – nada a ver com a célebre estilista – é ambientado em Pas-de-Calais, no norte da França, onde nasceu o diretor. No verão de 1910, a família Van Peteghem – formada pelo patriarca esquisitão André (Fabrice Luchini), a severa esposa Isabelle (Valeria Bruni Tedeschi) e as duas filhas do casal – vai passar sua tradicional temporada na confortável propriedade construída em um terreno com uma vista privilegiada. A reunião do esnobe clã completa-se com a visita do apalermado Christian (Jean-Luc Vincent) e a chegada da histérica Aude (Juliette Binoche), mãe da figura andrógina Billie (Raph).
O contraponto aos sofisticados e decadentes burgueses é a comunidade local de pescadores, dos quais se destacam os Brufort, gente bruta e pobre que vive de catar mexilhões e de ajudar pessoas na travessia por charcos e áreas alagadas da região – logo é revelado que eles se alimentam dos corpos dos turistas que lá passeiam. Enquanto uma dupla improvável de policiais, formada pelo descomunalmente roliço inspetor-chefe Alfred Machin (Didier Després) e seu mirrado assistente Malfoy (Cyril Rigaux), investiga uma sucessão de desaparecimentos nem tão misteriosos assim, Billie e Ma Loute (Brandon Lavieville), filho do pescador Brufort (Thierry Lavieville), apaixonam-se.
Mistério na Costa Chanel assume o tom de farsa e comédia nonsense para denunciar o mundo em ruínas da belle époque, em que uma burguesia de aspirações aristocráticas ignora a classe trabalhadora desassistida de quase tudo, apesar de ambas conviverem no mesmo espaço – as belas e desoladas paisagens marinhas mostradas no filme dão conta de ilustrar essa singular e paradoxal amálgama de contrários. O grande ator Fabrice Luchini está engraçadíssimo como o tolo chefe dos Van Peteghem, circulando em cena cheio de tiques e encurvado por uma corcunda, enquanto Juliette Binoche – em seu segundo trabalho em um filme de Dumont, depois de protagonizar o pungente Camille Claudel 1915 (2013) – parece rir de si mesma interpretando uma doidivanas de reações dramáticas ridiculamente exageradas. Divertido, grotesco e, em alguns momentos, arrastado, Mistério na Costa Chanel é uma obra no mínimo curiosa, cujas referências visuais vão do surrealismo do pintor belga René Magritte ao humor ingênuo das histórias em quadrinhos de Tintin e seus atrapalhados detetives Dupond e Dupont – passando pelo realismo mágico e por filmes do mestre Federico Fellini como 8 1/2 (1963), E la Nave Va (1983) e Amarcord (1973).