Por André Venzon
Artista visual, curador e gestor cultural
Num mundo marcado pela velocidade das imagens lançadas cotidianamente à nossa frente – com sua pluralidade temática e esvaziamento de signos –, parecemos estar imersos apenas como espectadores na busca do seu próprio tempo individual, um tempo que precisa ser conquistado permanentemente por nós mesmos. Uma força para conseguirmos assimilar alguma beleza e subjetividade dentro desse emaranhado das coisas instantâneas. Assim, fortalecendo a condição de quem resiste, se ainda tivermos tempo para a arte da observação, seja ela num museu, numa cidade, numa rua aleatória de um mapa vasto e repleto de outros lugares, ou até mesmo no interior de um hotel, a nossa atenção poderá ser despertada e remodelada pela condição ativa do nosso olhar. É essa a transformação operada nas obras de Vera Reichert que nos aproxima da poética imersiva das águas.
No seu olhar de descoberta e apreensão, uma potência que é desenvolvida no interior de cada artista, há também um fluxo. Vera compreende e expande em seu trabalho as condições de que “tudo no mundo flui e nada mais permanece”. A matéria da qual somos majoritariamente constituídos, a água, faz a vida circular em nós e na terra. Um movimento que opera uma diversidade de linguagens, da pintura à fotografia, da escultura à instalação, para estar presente em cada elemento dominante das suas criações. Aqui, a água é sua matéria-prima, a mater (mãe) das suas formas artísticas. Por isso, esta exposição é um convite para mergulharmos não apenas no seu pensamento artístico, mas, também, numa das profundas questões da humanidade, a urgente necessidade de preservarmos os simbolismos do elemento água.
Dando atenção para o projeto curatorial, as obras da artista são apresentadas no espaço cultural do Hotel Swan, em Novo Hamburgo, na forma de três grandes instalações que dialogam entre si em termos conceituais sem abdicar de sua essência formadora. As fotografias da Série Superfícies, que constituem o grande painel no alto da entrada, rendem um tributo contemporâneo ao Museu de l’Orangerie e a um dos precursores do movimento impressionista, com as belezas de Monet e as suas célebres Ninfeias no Lago em Giverny, um artista que construiu seus próprios jardins e que nos inspira e desafia a pensar a dimensão poética da natureza que queremos preservar.
Sabendo que as águas não estão seguras, Vera Reichert extrai suas esculturas – por meio das máquinas que processam elastômeros – na forma de um material para lembrar da importância de reciclarmos resíduos industriais e valorizarmos a vida que há na dimensão natural de um planeta em colapso. Tais obras da Série Coral Bleaching flutuam sobre a parede de um imenso vão e remetem a seres que habitam as águas profundas e que são, igualmente, responsáveis pela purificação dos oceanos. A artista, que pratica o mergulho submarino, faz com que nos encantemos com uma premissa simples, mas de grandeza reveladora: ao ficarmos apenas na superfície, o mundo profundo e misterioso se oculta.
Na Série Gotas, com fotografias de paisagens lacustres e espelhos suspensos da treliça que estrutura a pele de vidro da edificação, a artista retoma o mito de Narciso, que vê a si mesmo espelhado na lâmina d’água. Porém, o espelho de Vera ilumina ao mesmo tempo em que conscientiza. Ele nos coloca sob uma reflexão de que, se não formos capazes de ver além dessa primeira imagem oscilando no raso, além do próprio eu e da nossa vaidade, morreremos submersos na nossa própria imagem angustiante. Portanto, o que Vera nos propõe como espectadores de nós mesmos é uma obra que, ao exaltar a água, evidencia do nascimento à morte, do perfume ao suor, da lágrima ao sangue, da bruma à chuva esse líquido vital que eleva nossa existência e define o mundo.
Em sua magnitude e condição simbólica, somos como povoados, cidades e civilizações que nasceram nas margens dos rios , que alimentam lagoas, mares e oceanos. Essa substância que nos liberta dos estreitos limites da nossa condição humana, nutre o corpo, a alma, e também inspira obras poéticas, como a passagem da vida em Águas de Março, de Tom Jobim e Elis; o fluxo de consciência em Água Viva, de Clarice Lispector; a fantasia em A Forma da Água, de Guillermo Del Toro; a magnificência barroca da Fontana Di Trevi, construída por Nicola Salvi, em Roma; o amor e a beleza no clássico Nascimento de Vênus, de Botticelli; a magia de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, até a crítica e trágica Gota d’Água, de Chico Buarque. A poética da água nos ajuda a enfrentar a vida. É a garantia da nossa própria sobrevivência, intelectual e humana. Fria ou quente, para beber, tomar banho ou lavar a alma, para cozinhar, para gerar energia, para nos dar o peixe e o frescor, o que comer, para limpar, para abençoar.
As águas, como uma extensão do divino, do humano e do natural, expostas a partir das obras de Vera Reichert, nos revelam sua própria magia no estado de fluxo, estabelecendo uma troca constante de energia com o seu observador, mas elaborando, igualmente em sua condição inquieta, novas narrativas visuais, mais plurais e diversas, menos estanques num universo que tem o movimento como essência.
Espelhos d’Água
São três grandes séries ou instalações apresentadas no Hotel Swan Novo Hamburgo (Av. Dr. Maurício Cardoso, 303 – Hamburgo Velho). Visitação até 17 de fevereiro. Entrada franca.