O empresário Abraham Lerrer fez história no comércio da avenida Azenha, na Capital, no comando da Casa Lú, loja que ganhou fama na segunda metade do século passado por vender roupas e calçados de qualidade a preços acessíveis. Nas liquidações, a fila dobrava a esquina da Rua General Caldwell e havia gente que dormia na calçada para não perder as melhores ofertas. Atencioso e gentil, Lerrer fazia questão de ir pessoalmente até o estoque buscar o par de sapatos a fim de experimentá-lo nos pés das clientes.
Os amigos gozavam de privilégio ainda maior – na hora de abrir crediário, o próprio dono da loja era quem assinava os papeis como fiador. Sem contar os empréstimos a fundo perdido concedido aos mais chegados, com os quais compartilhava mesas de bares como o lendário Van Gogh, na Cidade Baixa.
Para conciliar a vida de comerciante à de notívago inveterado, alternava madrugadas de boemia vividas sem remorso com noites nas quais se recolhia cedo ao berço. Seja qual fosse o caso, não dispensava a bicicleta ergométrica de manhã para manter a forma física. Não à toa, boa parte das amizades era formada pela nata da boemia de Porto Alegre da época, capitaneada pelo compositor Lupícinio Rodrigues e pelos músicos Laci do Trombone e Valtinho do Pandeiro, além de jornalistas como Paulo Sant’Ana e Kenny Braga.
Com frequência, a turma era convidada a participar de serenatas e churrascos no apartamento de Lerrer, no bairro Rio Branco, onde o cantor Jamelão costumava se hospedar sempre que vinha à capital gaúcha. Por sinal, o sambista carioca ali se sentia em casa a ponto de esticar as temporadas em até duas semanas. Entre as lembranças de infância de Simon Lerrer, filho único do dono da Casa Lú, está a cena de Osvaldo Sargentelli adentrando o apartamento acompanhado de uma dezena de mulatas no Dia dos Pais.
— O pessoal apareceu para o almoço e passou o dia conosco. À noite, depois de muito samba e muita caipirinha, Sargentelli levou as mulatas para o Teatro Leopoldina, onde fariam um espetáculo — conta Simon.
Abraham Lerrer morreu de câncer de pulmão, em 1993, aos 75 anos de idade, consequência do vício no cigarro, que não abandonou até o último dia de vida, mesmo na cama do hospital. Em 2002, a Casa Lú foi vendida pela família para o grupo uruguaio Lolita, que mais tarde encerraria suas atividades no Brasil, e, hoje, é apenas uma lembrança dos tempos áureos do comércio da Azenha.
Além da marca de empresário bem-sucedido, Lerrer deixou eternizadas manifestações de generosidade, apreço e fidelidade, como a frase dita ao violonista Darcy Alves, falecido em 2015, um dos amigos mais próximos: “Olha, Darcy, se em algum momento tu estiveres precisando de ajuda ou passando por alguma dificuldade e não me procurares, tenhas a certeza de que eu jamais irei te perdoar”.