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Carros com som turbinado opõem quem quer fazer festa e os que buscam sossego na praia. O conflito não é novo. A cada temporada, veranistas põem casas à venda e empresários somam prejuízos. Diante da avalanche de reclamações ao fone 190 no feriado de Ano-Novo, a Brigada Militar passou a apreender carros que circulam com som alto à beira-mar, mesmo durante o dia. Resta saber se isso fará os adeptos da sonzeira baixarem o volume, já que, para eles, verão é sinônimo de diversão.
Paixão pelo som extremo
Maicon Hoffmann tem 23 anos e trabalha com o pai na madeireira de propriedade da família, em Itati, no Litoral Norte. Aos 18 anos, ele comprou o primeiro carro - e o primeiro equipamento de som. Aos poucos, uma caixinha de cada vez, foi equipando o veículo, até que ele ficou pequeno. Trocou por uma Montana, para levar na caçamba a aparelhagem de R$ 12 mil até as praias de Arroio do Sal e Curumim aos finais de semana.
- Meu pai diz que é coisa de guri, mas eu gosto. Tem gente que curte futebol, moto, eu curto som - diz Maicon.
O agricultor João Carlos Becker, 20 anos, acompanha o amigo nas festas pelo litoral. A Saveiro branca, adesivada com a provocativa frase "acabou o sossego", custou tanto quanto a aparelhagem: R$ 15 mil. Mas o equipamento já está negociado. A ideia é trocar por outro, ainda mais potente, no valor de R$ 25 mil.
- Quem curte som é assim, quanto mais coloca, mais quer - afirma João.
Com as namoradas na carona, os dois argumentam que ter som no carro é uma forma de fazer festa em qualquer lugar, sem precisar pagar ingresso. A dupla reclama da intolerância dos veranistas, que não entendem esse conceito de diversão. Eles criticam também a ação da polícia, que só por vê-los equilibrar uma caixa em cima da outra já endurece na abordagem.
A intensidade do som automotivo pode chegar a 140 decibéis - o máximo permitido à noite nas cidades é 60.
Outro veraneio sem descanso
Pela janela da casa de veraneio, em Imbé, o médico veterinário Arthur Fischer Neto, 51 anos, vê o mar colorido por pipas de kitesurfe que balançam ao sabor do Nordestão, em um fim de tarde. Vê também o vidro trepidar quando um carro passa devagar pela Avenida Beira-mar, com som no último volume.
- O "tum-tum" aqui é eterno, mas imagina 10 carros com o som assim, tocando a madrugada inteira - diz.
Incomodados com essa situação, vizinhos de Arthur colocaram à venda casas avaliadas em R$ 500 mil. Ele mesmo já trocou de praia anos atrás, em função do barulho. Agora, resolveu voltar para Imbé por ter amigos e familiares na cidade. Viajou 800 quilômetros de Uruguaiana para o litoral para descansar no feriado de Réveillon, mas dormiu menos de três horas por noite entre os dias 28 e 31 de dezembro.
Telefonou 45 vezes para o 190 em uma única madrugada. Outros vizinhos ligaram 20 ou 30 vezes. Passado o feriado, resolveram formar uma comitiva para ir até a prefeitura cobrar providências.
Em Arroio do Sal, onde também há um ponto de concentração de veículos com som potente, ninguém precisou contar ao prefeito o que estava acontecendo na praça durante a madrugada. Luciano Pinto da Silva, que preside a Associação dos Municípios do Litoral Norte, é um dos atordoados pela sonzeira.
- Não posso ver televisão, não posso atender o telefone, é ensurdecedor - descreve o prefeito.
No fim de semana seguinte à virada do ano, quando o policiamento no litoral foi reforçado, guardas municipais e policiais militares montaram barreiras nos pontos de encontro de som automotivo.
- Esse tipo de veranista não nos interessa, não agrega nada. É um mau gosto absoluto e um desrespeito total às pessoas ordeiras que querem descansar - afirma Silva.
Com data para fechar
Um patrimônio de 40 anos, construído em estilo medieval, com 56 apartamentos de até 60 metros quadrados de área e vista para o mar, o Hotel Samburá, em Imbé, já tem data marcada para fechar as portas: março de 2015. Só não será ainda em 2014 porque ainda há compromissos a cumprir com parceiros, mas a decisão já está tomada.
O motivo é o som alto nas madrugadas de verão, que, ano após ano, vem gerando prejuízos ao empreendimento. Em 2013, foram devolvidos R$ 11 mil. Neste ano, só no Réveillon, foram R$ 19 mil de reembolso. Turistas que vieram de outros Estados para passar os cinco dias do feriado hospedados no Samburá fizeram as malas após a primeira noite mal dormida, e pediram o dinheiro de volta.
- Devolvo, porque o hóspede está no direito dele. O turista vem para cá procurar descanso e encontra esta algazarra - afirma o presidente do Grupo de Hotéis Kimar, Francelino Meregalli da Silveira.
Ele afirma que, há anos, o hotel vem reduzindo o valor das diárias e chega a devolver 30% das reservas em função do barulho. Silveira já ofereceu viaturas à polícia, pediu apoio à prefeitura, entrou com ação judicial, mas nada funcionou.
Todo o investimento em marketing é derrubado pelos relatos de quem já passou pelo hotel e não conseguiu dormir. Ele ainda pretende entregar ao Ministério Público dezenas de e-mails de hóspedes indignados, para cobrar o Estado na Justiça pelos prejuízos acumulados em anos sem sossego.
- Se não solucionarem a questão do som, o destino deste hotel é fechar. A situação está insustentável - avalia o empresário.
Agora, é tolerância zero
A tática da Brigada Militar com relação aos que exageram no volume do som automotivo para este veraneio é de tolerância zero. Mesmo à luz do dia, qualquer veículo flagrado com som acima do permitido é autuado e recolhido. Nos finais de semana, a BM está montando barreiras para evitar aglomerações em torno de carros com som.
- Normalmente, o que acontecia era que a viatura chegava, e eles baixavam o volume, depois aumentavam de novo. Agora, mudamos de postura e estamos apreendendo o carro. Vamos vencer esse pessoal no cansaço - garante o tenente-coronel Rogério Alberche, comandante regional de policiamento ostensivo no Litoral Norte.
O policial reconhece que houve falta de agentes até o começo de janeiro, quando o litoral contava apenas com o efetivo fixo. Com o reforço de verão, foi possível agir mais fortemente. A medida de autuar e apreender o veículo leva em conta as punições penais e administrativas da perturbação do sossego alheio e do uso irregular de som automotivo (veja no quadro abaixo).
O comandante ressalta que o cidadão tem direito de reclamar sempre que se sentir incomodado, independentemente de horário. Além do fone 190, pode ser usado o 181 (Disque Denúncia). O número da placa do veículo e vídeos que flagram o som alto também são úteis para o registro.
Até quinta-feira, último balanço disponível no fechamento desta edição, 71 ocorrências haviam sido registradas por perturbação do sossego e 25 veículos haviam sido apreendidos no Litoral Norte.
- É importante que o cidadão faça a ocorrência, pois, muitas vezes, a viatura chega ao local, mas o denunciante não quer registrar. Aí, o sujeito chega na Justiça e acaba inocentado - explica Alberche.
As operações da BM nos pontos de concentração têm identificado outros delitos associados, como tráfico e consumo de drogas, furtos e a potencial associação de álcool e direção.
O que diz a lei
São três os possíveis enquadramentos legais do som alto no carro
Poluição sonora
Previsão legal: Lei 6.938/81 e resolução 001/1990 do Conselho Nacional do Meio Ambiente.
O que estabelece: o limite de ruído em áreas habitadas, conforme a NBR 10.151, é de 40 a 70 decibéis durante o dia e de 35 a 60 decibéis à noite.
Punição: multa ou até quatro anos de prisão.
Infração de trânsito
Previsão legal: artigo 228 do Código de Trânsito Brasileiro e resolução 204/2006 do Conselho Nacional de Trânsito.
O que estabelece: é permitido, em veículos de qualquer espécie, o uso de equipamento que produza pressão sonora não superior a 80 decibéis, medido a sete metros de distância do veículo. Vale para carros em circulação ou parados em via pública.
Punição: cinco pontos na Carteira Nacional de Habilitação, multa e retenção do veículo.
Perturbação do sossego
Previsão legal: artigo 42 da Lei de Contravenções Penais 3.688/41.
O que estabelece: a utilização, em área habitada, de aparelhagem de som acima dos limites fixados, independentemente do horário, está sujeita à lavratura de Termo Circunstanciado de Ocorrência.
Punição: prisão simples de 15 dias a três meses ou multa.
Como resolver?
As soluções possíveis para o problema
Criar áreas de barulho
O presidente do Clube de Som Automotivo do RS, Ivo Matos, defende a proposição de um projeto de lei para criar locais destinados ao uso de som automotivo, afastados das zonas centrais das cidades.
Proibir a instalação
O prefeito de Arroio do Sal, Luciano Pinto da Silva, que preside a Associação dos Municípios do Litoral Norte, acredita que a única forma de solucionar o conflito é proibir, por lei, a instalação de equipamentos de som automotivo de alta potência.
Investir em educação
O Conselho Nacional do Meio Ambiente instituiu o Programa Nacional de Educação e Controle da Poluição Sonora, em 1990, com o objetivo de conscientizar a população quanto aos efeitos prejudiciais do excesso de ruído, por meio de programas educativos na mídia e em escolas.