
Vida corrida e uso cada vez maior de recursos digitais como jogos, redes sociais e streamings são alguns dos elementos que têm causado redução do hábito de leitura em diferentes países do mundo. Em 2024, o Brasil registrou pela primeira vez um número maior de não leitores do que de leitores, segundo a pesquisa Retratos da Leitura.
Alguns elementos, no entanto, têm se mostrado eficientes na formação de novos leitores. Entre eles, estão a popularização de clubes de leitura, o surgimento de influencers digitais que falam sobre literatura e o incentivo de pais e professores.
Influenciadora digital de literatura
Bruna Krug Bomm, 26 anos, habituou-se a ler desde pequena. Quando criança, via sua mãe lendo e sacava seus gibis da Turma da Mônica para ficar na companhia dela. Na adolescência, fascinada pela banda One Direction, passou a ler fanfics (histórias ficcionais escritas por fãs) relacionadas ao grupo musical. As obras obrigatórias no colégio, como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, não vingaram.
— Confesso que teve alguns deles que eu não li e pesquisei resumos na internet, porque não me interessavam. Já das fanfics eu gostava, e me fizeram perceber que eu queria ler romance mesmo, como os da Jane Austen — recorda a estudante de Publicidade e Propaganda.
Tento tirar a leitura do pedestal e mostrar que é como assistir a um filme. Qualquer um pode pegar um livro e ler
BRUNA KRUG BOMM
Influenciadora digital
Conforme o interesse aumentava, crescia também seu consumo de conteúdo literário em redes como o YouTube e o Instagram, de onde tirava indicações de novas leituras. Em 2022, resolveu criar, ela própria, uma conta no Instagram sobre livros.
— Ao meu redor não tem muitas pessoas com hábito da leitura. Então, criei o Instagram para ter com quem compartilhar, mesmo não tendo formação nessa área — relata a jovem.
A troca foi gerando crescimento no público da criadora de conteúdo. Hoje, são 13,8 mil seguidores no Instagram e 11,9 mil inscritos no YouTube. Bruna considera o número baixo se comparado a outros nichos, como maquiagem, saúde e vida fitness, mas o engajamento e as parcerias com clubes de leitura a animaram a investir na conta. Agora, tem tentado misturar assuntos para atrair públicos novos:
— Falo sobre o meu dia a dia e, como a leitura faz parte dele, os livros acabam aparecendo. Espero que as pessoas se interessem por livros a partir disso.
Público feminino e jovem
Em torno de 80% dos seguidores de Bruna são do gênero feminino e a principal faixa etária é dos 25 anos 34 anos, seguida pela dos 18 aos 24 anos. As indicações de leitura são variadas: envolvem diferentes nacionalidades, culturas e gêneros dentro da ficção. Para a jovem, o mais importante é falar de uma forma acessível:
— Para quem ainda não tem o hábito da leitura, principalmente, temos que evitar termos técnicos. Tento tirar a leitura do pedestal e mostrar que é como assistir a um filme. Qualquer um pode pegar um livro e ler.
A jovem reconhece que o uso de redes sociais dificulta a concentração na leitura, mas procura controlar o impulso de pegar o celular. Entre seus seguidores, sente que há um movimento de conscientização sobre os malefícios do excesso do uso de telas e a busca por hobbies offline, como ler, fazer crochê e aprender cerâmica.
Paixão pela literatura brasileira
Kayane da Silva dos Santos, 18 anos, está no 4º ano do Ensino Médio integrado ao curso técnico em Química do campus Feliz do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). O dia a dia é corrido, mas faz questão de manter horários para a literatura, sua companheira desde a infância, com livros como Alice no País das Maravilhas e O Pequeno Príncipe, e seguiu pela adolescência, com coletâneas como Percy Jackson e Harry Potter.
No IFRS, foi apresentada à literatura brasileira. A paixão foi imediata.
— Já li clássicos estrangeiros, como 1984 e A Metamorfose, mas nunca me tocaram como os livros brasileiros. A literatura estrangeira trata de aspectos mais da cultura daquele país. Já quando tu lês Tudo É Rio ou Torto Arado, por exemplo, aquilo te abre os olhos para uma realidade que, mesmo que não seja a tua, é brasileira. A gente se identifica mais — comenta Kayane, que acha que a literatura nacional deveria ser mais valorizada.

Quando a tecnologia é aliada
Apesar das críticas que os meios digitais sofrem por distraírem as pessoas da leitura, a estudante aponta para um ganho que teve com a internet: o acesso a livros durante a pandemia, quando era mais difícil ir a bibliotecas ou livrarias.
— Se usado da maneira correta, o meio tecnológico colabora muito com o hábito da leitura, que foi o meu caso — avalia a menina.
Agora que está no último ano do curso técnico e realiza o estágio obrigatório, além de outras atividades no IFRS, Kayane tem pouco tempo para ler: lê nos transportes de ida e volta das aulas e, quando consegue, antes de dormir. Para o futuro, quando ingressar na faculdade, tem medo de não dar conta.
— Vou ter que trabalhar e manter meu próprio aluguel, porque quero fazer uma faculdade que é longe de casa. Então, com todas essas preocupações da vida adulta, a leitura, muitas vezes, deixa de ser prioridade — projeta a jovem, que quer cursar Psicologia na UFCSPA.
Como dica para que outros estudantes se apaixonem pela literatura, Kayane ressalta a importância da influência da escola, que foi determinante em seu caso e no de seus colegas. Se no início do Ensino Médio muitos reclamavam das leituras obrigatórias de obras de 300 a 400 páginas, agora já se acostumaram e até se interessam.
A importância da mediação
Uma das professoras citadas pela jovem como inspiradoras na criação do hábito da leitura é Izandra Alves, que trabalha há mais de 10 anos com pesquisas ligadas à leitura.
Filha de pai semianalfabeto, assistia a versinhos rimados e contos populares inventados por ele, o que lhe despertou a curiosidade pela palavra e, mesmo sem o costume de ler, lhe levou a estudar o assunto.
Hoje, atua em atividades voltadas para a comunidade da região de Feliz, como a mediação de pequenos leitores em escolas, o que também é feito em espaços de privação de liberdade, como asilos e um centro de atendimento socioeducativo.
— As pessoas querem ler, mas precisam de uma mediação. Sem isso, noto que não anda, inclusive em sala de aula. Do 6º ano em diante, os números de leitura caem porque os professores param de ler para eles e enchem caderno. Quando lemos com eles, estamos ensinando a ler — recomenda Izandra, que incentiva a prática da leitura em sala de aula entre docentes até mesmo do Ensino Médio.
Se usado da maneira correta, o meio tecnológico colabora muito com o hábito da leitura, que foi o meu caso
KAYANE DA SILVA DOS SANTOS
Estudante
Segundo a professora do IFRS, para despertar o gosto pela leitura, é preciso colocar três elementos em confluência: o leitor, o livro e o autor. Escolhendo a leitura certa para aquele leitor e ajudando-o na mediação no início, aos poucos o hábito toma conta.
O percentual de pessoas que, na pesquisa Retratos da Leitura, responderam que liam em sala de aula vem caindo ao longo das edições do estudo: se 35% dos leitores afirmaram ler livros nesses espaços em 2007, o índice caiu para 19% em 2024.
Interesse que virou profissão
Formada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rachel Moreira Almeida Rodrigues, 27 anos, participou durante a faculdade do LER – Clube de Leitura, que promove leituras coletivas. O interesse se aprofundou e se tornou profissão: fez especialização em Alfabetização e Letramento e, depois, mestrado em Educação. Trabalha, ainda, como professora de Anos Iniciais.
Na infância, seu pai separava momentos semanais para ler junto da filha. Na adolescência, começou seu voo solo por leituras como A Culpa É das Estrelas, de John Green. Hoje, lê livros policiais, fantasias, romances, suspenses, histórias de terror, biografias, infantis e outros gêneros. Sua estratégia para não perder o hábito é ler só o que tem vontade.
— Tem que ser o que cabe no meu humor. Se estou achando o livro chato, já abandono e vou para o próximo. Não me forço a ler, porque sei que não funciona — afirma Rachel.

Leitura compartilhada em voz alta
A participação no LER partiu da solidão que às vezes se sente ao ler ler um livro sozinho. Frequentar um clube de leitura que tem outras pessoas, data e lugar para acontecer a ajudou a se motivar.
— Discutir as suas percepções, que não necessariamente vão ser as mesmas da outra pessoa, e ter esse momento compartilhado de conversar, é importante — sintetiza a pedagoga.
O fato de a leitura nesse clube acontecer em voz alta também é elogiada por Rachel, que acha melhor esse formato do que aquele no qual o encontro acontece somente quando o livro é finalizado. A oralidade do processo, no seu entendimento, dá um ritmo diferente à leitura, que permite conversas entre capítulos.
Como resultado do hábito, a jovem sente que expandiu seu vocabulário, inclusive em outros idiomas, e seu repertório cultural. Há, ainda, ganhos na saúde mental: Rachel combina consigo mesma de não mexer no celular em alguns momentos, como viagens de Uber e antes de dormir, o que a leva com frequência a ler. Isso faz com que sinta sua cabeça mais descansada.
— Ler é mais divertido do que uma rede social, mas, às vezes, o difícil é parar, organizar a rotina e encontrar o livro de que você vai gostar. Acho que, se os jovens virem as pessoas em volta acessando a leitura como algo interessante e divertido, e que não é forçado, eles vão ler — avalia.
Formação de comunidade
Marília Forgearini Nunes, coordenadora do LER e professora da Faculdade de Educação da UFRGS, criou a iniciativa em 2019 porque percebia que havia pouco espaço em sala de aula para conversar sobre livros. No clube, era possível partilhar leituras e trazer outras pessoas que, mesmo sem tempo para ler previamente, poderiam se interessar pela leitura coletiva. As atividades vinham correndo bem e chegaram ao auge durante a pandemia.
— A pandemia nos afastou fisicamente, mas, de certo modo, nos aproximou online. Investimos em leituras maiores e na íntegra e conseguimos, inclusive, atrair os próprios estudantes de graduação. Entendemos que a formação do leitor literário é uma formação de comunidade e que talvez muitas pessoas não leiam porque não encontram esses espaços de partilha — analisa Marília.
O objetivo foi criar um formato que passasse longe de ser uma aula teórica ou de literatura, sendo colaborativo. Com isso, a professora percebe que, ainda que talvez não se tenha criado leitores com o clube, pessoas que já tiveram o hábito em outros momentos da vida foram resgatadas.
Após um período atuando exclusivamente na formação de mediadores de leitura para turmas dos Anos Iniciais, o LER voltou a fazer rodas de leitura neste mês.
Entendemos que a formação do leitor literário é uma formação de comunidade e que talvez muitas pessoas não leiam porque não encontram esses espaços de partilha
MARÍLIA FORGEARINI NUNES
Coordenadora do LER e professora da Faculdade de Educação da UFRGS
Repensando o currículo
Após a divulgação da última pesquisa Retratos da Leitura, o curso de Letras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) decidiu repensar seu currículo de forma a fazer com que a formação de professores incluísse também a formação de leitores.
— Um dos lugares onde havia uma leitura sistemática era a sala de aula, e isso está diminuindo. Por isso, o nosso foco de formação de professores não pode ser apenas a Educação Básica: primeiro precisamos que os nossos futuros professores sejam leitores, para que eles também formem leitores — explica Márcia Lopes Duarte, professora da Unisinos.
O currículo, então, se voltou para a leitura literária e extensiva em sala de aula. As metodologias também foram modificadas para gerar um encantamento dos alunos pela literatura, a partir de atividades acadêmicas. Há, por exemplo, um curso de extensão voltado para poemas e letras de música, além de um clube de leitura montado por alunos da modalidade à distância do curso de Letras e a aula inaugural do ano passado, que foi sobre terror e literatura brasileira.
— Precisamos fazer com que o aluno entenda que a literatura está no dia a dia, não é uma coisa tão afastada como ele imagina — observa Márcia.
No entendimento da docente, professor que não é leitor não forma outros leitores. Tendo o entendimento do poder transformador da literatura sobre a visão do mundo de uma pessoa, a educadora acredita que esse amor pelos livros pode se acender nesses futuros docentes e ser repassado para as novas gerações.