Por Diana Corso
Psicanalista e escritora
O reconhecimento da importância da própria mãe na história de cada mulher tem a tônica da curiosidade, como se cada filha tivesse um mistério a desvendar. Há algo na mãe que temos, na que somos, seremos ou seríamos, que pede para ser constantemente observado, interpretado, por vezes até exorcizado.
Só a arenga de ressentimentos que colecionamos não justifica o fascínio que nos torna tão atentas às nossas mães. O que conseguimos pensar sobre elas vem entremeado pela queixa da sua falta de transparência. Não é que elas ocultem segredos, e sim que há muitas coisas que ainda não sabem ser ditas entre as mulheres, especialmente entre as diferentes gerações. A trajetória feminina leva a marca da solidão, de um silenciamento tão antigo que não se sabe ao certo quando começou, nem por que se consolidou desse jeito.
Às vezes penso que somente a opressão não o explica, embora provavelmente esteja sendo injusta com nossas antepassadas. Só sei dizer que naturalizamos o caráter inefável das nossas verdades. Porém, nem tudo são desentendimentos nesses amores entre mães e filhas. Há conexões, como se pode ver em uma cena de Laços de Família, um popular conto de Clarice Lispector, em que elas se encontram de um jeito inusitado. Na verdade trata-se de um “encontrão”, uma colisão.
Essa parte da história ocorre no momento em que se encerram duas penosas semanas da visita de uma mãe à casa de sua filha. Severina, a mãe, passou toda a temporada criticando Catarina, a filha. Insistia que o neto estava magro e nervoso. Para alívio de todos, chega a esperada hora da avó partir. No táxi em que Catarina acompanha a mãe até a estação, acontece um movimento brusco que joga uma contra a outra. No instante desse impacto, ambas ficam chocadas.
Uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas.
– Ah! Ah! – exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! (...)
Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder. Catarina fora lançada contra Severina em uma identidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. (...) Como se mãe e filha fossem vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso.
No caminho, Severina se inquietava, certa de ter esquecido algo. Clarice deduz o que ambas esqueceram, de dizer uma à outra: “Sou tua mãe, sou tua filha”. As palavras insuficientes tornaram o choque de corpos eloquente.
No coração da relação mãe-filha há cumplicidades vertiginosas. Apesar disso, apesar dos silêncios, há um legado que passa de mães para filhas. Ele é assombroso, no sentido freudiano da “inquietante estranheza”, ligada às coisas situadas no limiar da racionalidade. O corpo da mãe origina e espelha, inspira a filha a construir os próprios contornos, enquanto ameaça engolfá-la.
Não é que se fale pouco. Já vimos como as filhas queixam-se das observações ora depreciativas, ora misóginas, de suas mães. Maldita tradição que demora para desaparecer, a desvalia feminina sempre foi projetada nas descendentes, uma corrente de críticas e autocríticas ferinas que enlaçam gerações. As mães desejam que suas filhas as transcendam, mas deixam de se reconhecer naquelas que se tornaram diferentes delas. Algo como: “Não se submeta a um casamento triste como eu fiz”, mas “que terrível que você se separou” ou “você está ficando uma solteirona”.
Na freada brusca do táxi, ocorreu um acontecimento transformador: uma transmissão algo elétrica, como quando dois corpos dão choque ao se tocar. Passamos os dons umas às outras com essa potência, mas de forma dissimulada. Esse súbito diálogo de peles funciona como um lembrete daquele primeiro amor, que todos vivemos com nossas mães. É um prazer feito de toques que filhas e filhos compartilham, mas nas mulheres permanece vivo em sua aguçada sensibilidade e variado erotismo. O que poderia ser um bom feitiço acaba sendo evitado e temido por ser incompreensível, inclassificável. Clarice nos conta da efetividade dessa força estranha, de que Catarina ficou imbuída depois do encontrão e da partida da mãe.
E de tal modo haviam se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita nesse momento, tão elegante, integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. (...) Nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias. (...) Parecia disposta a usufruir a largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito.
A possibilidade de experimentar o corpo da mãe, ambas impactadas com o efeito desse encontro, é uma das formas de transmissão do estranho legado da feminilidade. Um dia teremos também mais palavras, mas espero que nunca percamos a eloquência dos corpos.