
Recém adicionado ao menu da Netflix, O Quarto ao Lado (The Room Next Door, 2024) é um marco duplo na carreira do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, autor de Tudo Sobre Minha Mãe (1999), ganhador do Oscar, do Globo de Ouro e do Bafta de melhor filme internacional, e de Fale com Ela (2002), premiado na categoria de roteiro original pela Academia de Hollywood.
Trata-se de seu primeiro longa-metragem falado em inglês, após a experiência nos curtas A Voz Humana (2020) e Estranha Forma de Vida (2023). E O Quarto ao Lado conquistou pela primeira vez para a Espanha o Leão de Ouro no Festival de Veneza.
O troféu em Veneza acabou sendo um dos poucos recebidos pelo filme, totalmente ignorado nas indicações ao Oscar. No Globo de Ouro, Tilda Swinton foi uma das cinco rivais derrotadas por Fernanda Torres, de Ainda Estou Aqui, na disputa de melhor atriz em drama. Na premiação da Academia Espanhola, o Goya, O Quarto ao Lado competiu em 10 categorias, mas só venceu três: roteiro adaptado (assinado pelo próprio Almodóvar), fotografia (Eduard Grau) e música original (Alberto Iglesias).

O Quarto ao Lado é uma livre adaptação do romance O que Você Está Enfrentando (2020), da escritora estadunidense Sigrid Nunez, lançado no Brasil pela editora Instante. A história está ambientada em Nova York, onde Almodóvar retoma características de sua filmografia: as personagens femininas fortes; a defesa da liberdade de escolha; a celebração do vínculo emocional entre as pessoas e do sexo como um escudo, como um antídoto; o gosto pelo melodrama (mas temperado por um senso de humor ora ácido, ora amargo); a crítica à Igreja Católica; o emprego de cores quentes, como o vermelho e o amarelo; a trilha sonora que realça a gravidade das situações; o fetiche cinematográfico (suas obras estão cheias de citações, incorporam cenas de outros títulos, retratam atores ou diretores).
Mas há diferenças importantes, ainda que algumas já viessem sendo ensaiadas, como no semiautobiográfico Dor e Glória (2019). Cenários e figurinos abrem espaço ao verde, uma cor fria, sinalizando para o tom mais introspectivo. A trama não é nada labiríntica, vai direto ao ponto: a finitude da vida e a iminência da morte, temas que se tornaram mais caros para Almodóvar depois de virar septuagenário (está com 75 anos).
Logo na primeira cena de O Quarto ao Lado, desenha-se o conflito dramático. Interpretada por Julianne Moore, Ingrid é uma autora de sucesso que acabou de escrever um livro para tentar lidar com o seu medo da morte. Durante a sessão de autógrafos, uma antiga conhecida lhe dá uma triste notícia: outra velha amiga, a jornalista de guerra Martha (Tilda Swinton), está internada com um câncer cervical em estágio terminal. Não dá mais para operar, só resta participar de um tratamento experimental.
— Vivo entre a euforia e a depressão. A sobrevivência é quase decepcionante — admite Martha ao receber a visita de Ingrid no hospital.

O drama reaproxima as duas personagens, que passam a entabular longos diálogos, alguns deles ilustrados por flashbacks da juventude de Martha e de suas coberturas jornalísticas. Ela faz o balanço de sua vida porque já não a aguenta mais a tortura das falsas esperanças. A autopiedade não lhe cai bem, nem é estoica para suportar as dores excruciantes:
— Meu corpo vai continuar lutando enquanto eu sofro, sofro e sofro até o último suspiro?
É a deixa para Almodóvar abordar o tabu da eutanásia e do suicídio assistido, que envolve questões filosóficas, éticas e religiosas. No primeiro caso, uma equipe médica administra a dose fatal; no segundo, apenas fornece medicamentos para o procedimento, que é realizado pelo próprio paciente. Poucos países já legalizaram um ou os dois métodos.
Por coincidência, O Quarto ao Lado estreou nos cinemas do Brasil, em outubro de 2024, poucos dias depois de Drauzio Varella, o médico mais famoso do país, advogar pelo direito à eutanásia. Em coluna publicada em Zero Hora, Drauzio escreveu: "O código penal precisa atender às mudanças ocorridas nas sociedades modernas. Eu não quero de jeito nenhum vegetar num leito, sujeito à imprevisibilidade da visita da senhora com a foice, porque ela poderá me encontrar em condições indignas que ficarão gravadas para sempre na memória das pessoas que mais amo. (...) Enquanto tenho pleno domínio de minhas faculdades mentais, as leis devem me assegurar o direito de registrar em cartório as condições em que minha morte deve ser antecipada, por meios farmacológicos. É um tema controverso, mas a sociedade precisa enfrentá-lo".
No debate encenado por Pedro Almodóvar, a personagem de Tilda Swinton está resoluta, mas tem de lidar com seu medo, sua ansiedade, a possibilidade de arrependimento e um luto pelas coisas boas da vida — aí incluídos o sexo e os prazeres proporcionados pela literatura e pelo cinema (uma referência recorrente é o conto Os Mortos, de James Joyce, e sua adaptação cinematográfica pelo diretor John Huston, Os Vivos e os Mortos).
Também precisa encontrar um jeito de não incriminar a escritora encarnada por Julianne Moore, de não criar problemas com a polícia e com a Justiça para a amiga com quem vai dividir os últimos dias. No quarto ao lado do título do filme, Ingrid deve acomodar as suas convicções e emoções diante da dor sofrida por Martha.
— Me sinto muito próximo da personagem de Julianne: não consigo compreender que algo que está vivo tem que morrer. A morte está por todo lado, mas é algo que nunca compreendi bem. O filme fala de uma mulher que morre em um mundo que provavelmente também está agonizando — disse, durante o Festival de Veneza, Almodóvar, que, por meio do personagem interpretado por John Turturro, o intelectual Damian, acrescenta à discussão um alerta sobre as mudanças climáticas, o neoliberalismo e a ascensão da extrema-direita. — Mas não é um filme sobre a morte: é sobre a vida. Sobre a liberdade de decidir qual tipo de vida queremos ter. Até o final.
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