Na puritana sociedade dos Estados Unidos, filmes sobre sexo costumam virar fenômenos midiáticos. Os holofotes multiplicam-se quando a trama envolve uma fantasia sexual inconfessável e tem como protagonista uma estrela de Hollywood. É o caso de Babygirl (2024), que deu a Nicole Kidman a Copa Volpi de melhor atriz no Festival de Veneza e que pode render sua sexta indicação ao Oscar.
Só a atuação de Kidman já vale a ida ao cinema para assistir ao título dirigido pela holandesa Halina Reijn, a mesma de Instinto (2019) e Morte Morte Morte (2022). Apesar de milionária (sua fortuna é estimada em US$ 250 milhões) e consagrada (tem um Oscar, por As Horas, e cinco Globos de Ouro), a atriz de 57 anos continua trabalhando incansavelmente — em 2024, também protagonizou a comédia romântica Tudo em Família e as minisséries O Casal Perfeito e Expatriadas, além de aparecer na segunda temporada de Operação Lioness — e se desafiando artisticamente. Seu papel em Babygirl alinha-se àqueles vividos em Um Sonho Sem Limites (1995), De Olhos Bem Fechados (1999), Dogville (2003), Reencarnação (2003) e Obsessão (2012). Novamente, a personagem de Nicole Kidman precisa lidar com fartas doses de jogos eróticos, obsessões, humilhações, perigos e tabus.
O filme, por sua vez, remete ao longa-metragem de estreia de Reijn, Instinto (2019, disponível na plataforma MUBI). Nessa obra, Carice van Houten interpreta uma psicóloga que se apaixona por um agressor sexual que é seu paciente em uma instituição criminal. Em Babygirl, a diretora acompanha outra mulher em uma arriscada corda-bamba.
Trata-se de Romy Mathis, a CEO de uma grande empresa de tecnologia, casada com o diretor de teatro Jacob (Antonio Banderas) e mãe de duas adolescentes. Quando surge um estagiário 30 anos mais novo e muito atrevido, Samuel (encarnado por Harris Dickinson, de Triângulo da Tristeza e Garra de Ferro), ela se colocará em uma encruzilhada, pondo em risco a condição de símbolo do empoderamento feminino e a felicidade da vida familiar. Como equilibrar sucesso profissional e estabilidade emocional com aquilo que lhe dá prazer sexual?
Halina Reijn evidencia os desejos reprimidos logo na primeira cena. Após transar com o marido na cama do quarto do casal, a protagonista vai para um outro cômodo, onde, secretamente, acessa no notebook um vídeo pornô em que uma garota obedece a comandos masculinos. Romy se deita no tapete e se masturba, tapando com a outra mão a própria boca — ou seja, sufocando a sua fantasia de submissão. Aliás, em boa parte das cenas Nicole Kidman nem precisa falar para expressar seu conflito entre o consciente e o subconsciente, entre a vontade e a vergonha (ou a culpa), entre a imagem que cultiva aos olhos dos outros e a imagem que nutre seu íntimo — como ficar de quatro, feito uma cadela sequiosa por carinho.
O enredo pode sugerir uma aproximação com Nove e Meia Semanas de Amor (1986), Secretária (2002) ou Cinquenta Tons de Cinza (2015), mas Babygirl não investe no abuso, na violência ou na dor para retratar uma relação de tom sadomasoquista. Na verdade, conjuga a fetichização (vide a cena com o pires de leite) e o suspense — será que o estagiário está escondendo algo da executiva e do público? Alguém vai descobrir o caso entre Romy e Samuel? Se sim, o que vai acontecer, em casa e no trabalho? — com um inesperado senso de humor.
Por outro lado, as participações da jovem assistente da CEO, Esme (Sophie Wilde, de Fale Comigo), convidam ao debate sobre como as novas gerações encaram o mundo empresarial e quais são os seus valores. Ou seja: Babygirl é um filme que se presta tanto para leituras psicanalíticas sobre comportamento sexual quanto para quem gosta de examinar relações de poder e ética profissional.
O roteiro de Halina Reijn e o desempenho de Nicole Kidman são realçados pela equipe técnica. A direção de fotografia de Jasper Wolf empresta um caráter voyeurístico ao filme — não raro, a câmera se posiciona como representasse o nosso olhar em um canto escondido de um escritório ou de uma festa. Já a montagem de Matthew Hannam remete à dificuldade de Romy atingir o orgasmo: várias cenas são cortadas antes do que poderíamos imaginar como um ápice.
A sensualidade é sublinhada pela trilha sonora, tanto a composta pelo fenomenal Cristobal Tapia de Veer, chileno-canadense ganhador de três Emmys pela série The White Lotus e autor da música de Sorria (2022) e Sorria 2 (2024), quanto pelas canções escolhidas — a dança de Harris Dickinson ao som de Father Figure (1987), sucesso de George Michael, é um dos grandes momentos da temporada. O tesão transborda.
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