Por vias tortas, a arte imita a vida. Richard Jewell (1962-2007) foi um herói, mas teve sua imagem pública terrivelmente manchada quando o FBI (a polícia federal dos Estados Unidos) e a imprensa norte-americana atropelaram a ética e abraçaram os estereótipos. O Caso Richard Jewell, uma versão cinematográfica dessa história, é um filme cheio de virtudes, mas sua recepção é prejudicada porque seus próprios realizadores atropelaram a ética e abraçaram os estereótipos.
Escrito por Billy Ray (indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado por outra história verídica, Capitão Phillips, de 2013) e dirigido por Clint Eastwood, O Caso Richard Jewell é mais um título na recente coleção que o cineasta vem montando sobre um tipo de personagem, seja real ou fictício: o sujeito comum que pratica um ato de bravura, o cidadão que enfrenta as autoridades, o herói que se torna alvo de investigação injusta, o homem que faz o correto mesmo que contrariando leis e protocolos. Enquadram-se em uma ou mais dessas categorias o piloto de avião que, em 2009, salvou vidas em um pouso de emergência no Rio Hudson, interpretado por Tom Hanks em Sully (2016); os três jovens soldados que, em 2015, impediram o ataque de um marroquino armado com fuzil, vividos por eles próprios em 15h17: Trem para Paris (2018); e o Earl Stone de A Mula (2018), o octogenário com dificuldades financeiras que aceita trabalhar no transporte de drogas para um cartel mexicano com o intuito de ajudar seus parentes, último papel encarnado por Eastwood, que completará 90 anos em maio. O olhar também pode ser dirigido a mulheres: em A Troca (2008), Angelina Jolie representou Christine Collins, uma mãe que, na Los Angeles dos anos 1920 e 1930, é difamada como doente mental depois de descobrir que a polícia forjou o "reaparecimento" de seu filho sumido.
Richard Jewell, tanto a pessoa quanto o filme, sintetiza esses personagens, temas e situações. Ele era um segurança de baixo escalão que, em 27 de julho de 1996, durante a Olimpíada de Atlanta, nos EUA, avistou uma mochila suspeita em um parque, o Centennial, onde eram realizados shows musicais. Graças a seu aviso às autoridades, apenas duas pessoas morreram quando a bomba explodiu. Centenas ficaram feridas, mas a tragédia teria sido bem maior se não fosse Richard, logo transformado em herói pela mídia. O problema é que, pouquíssimo tempo depois, ele se tornou o suspeito número 1 do atentado.
— De onde eu venho, quando o governo diz que alguém é culpado, sabemos que é inocente — comenta, com seu carregado sotaque do Leste Europeu, uma personagem do filme ao saber da história.
Eastwood reconstitui o antes, o durante e o depois. Emprega seu característico estilo — a economia narrativa, a sobriedade na fotografia, a montagem cadenciada, a parcimônia na trilha sonora — para imprimir a ilusão de realidade. Nisso, o protagonista exerce um papel fundamental. Se em 15h17: Trem para Paris o diretor recorreu aos personagens reais para formar o elenco principal, em O Caso Richard Jewell o ator Paul Walter Hauser (coadjuvante em Eu, Tonya e Infiltrado na Klan) trabalha como se fosse mesmo o homem simples colhido naquele furacão. Richard é um cara obeso de 30 e poucos anos que ainda mora com a mãe (a comovente Kathy Bates, indicada ao Globo de Ouro de atriz coadjuvante). Sua doçura, sua ingenuidade e sua obstinação em "servir e proteger" – o lema da polícia americana – cativam, mas depois acabarão sendo usadas contra ele.
Isso acontece quando o FBI e a imprensa começam a investigar o passado de Richard, à procura de evidências que reforcem a suspeita de ter, ele próprio, plantado a bomba. O segurança se encaixa no estereótipo: é solitário, já manifestara anteriormente o desejo de conquistar atenção, foi demitido de um emprego por abuso de autoridade e guarda um arsenal absurdo de armas. A cena em que os rifles, os revólveres, as facas e até uma granada vêm à tona é, ao contrário do que você possa imaginar, bastante engraçada, graças à química estabelecida entre Richard e seu advogado de defesa, Watson Bryant, interpretado com grandeza e senso de humor por Sam Rockwell.
— Você estava esperando um ataque zumbi? — pergunta Bryant.
— Eu sou da Geórgia — responde Richard, aludindo ao tradicional culto armamentista dos Estados sulistas dos EUA.
Mais tarde, será a vez do advogado fazer menção a outra instituição norte-americana, agora na seara gastronômica. Quando o quadro de Richard se agrava perante o FBI e a opinião pública, quando o Estado e o quarto poder conjugam pressa, irresponsabilidade e trapaça, quando o investigado, de boa fé, dá munição aos investigadores, Bryant o compara a "um pedaço de bacon", pronto para ser fritado e devorado.
O que colocou Richard na panela foi a junção da fome com a vontade de comer. E é este o prato servido por Clint Eastwood, tendo como cenário um balcão de bar, que provoca um gosto amargo, talvez repulsivo. De um lado, temos um agente do FBI, Tom Shaw (Jon Hamm, do seriado Mad Men), faminto por resolver o caso, mesmo que para isso jogue sujo. Do outro, uma jornalista policial, Kathy Scruggs (Olivia Wilde, da série House), ávida por contar uma história que a diferencie da concorrência. Kathy, sugere o diretor, tampouco joga limpo: usa o sexo como moeda para arrancar de Shaw alguma notícia exclusiva sobre o ato de terrorismo.
Eis o enorme calcanhar-de-Aquiles do filme, aquele "detalhe" que compromete o poderoso todo. Primeiro porque investe no estereótipo machista da repórter que dorme com a fonte – por extensão, da mulher que faz sexo para fazer carreira. Segundo porque cruza o mesmo limite que Kathy cruzou: o de publicar uma informação sem compromisso com a verdade, sem checagem e sem ouvir o outro lado. Sabe-se, por colegas dela, que Kathy era uma jornalista ambiciosa, de fato. Mas não há comprovação de que tenha, alguma vez na vida, transado para obter uma reportagem. O pior é que ela nem está mais aqui para retrucar: morreu em 2001, vítima de uma overdose de remédios. Ou seja, sem provas nem chance de defesa, Eastwood e o roteirista Billy Ray macularam ainda mais a reputação de Kathy Scruggs – que nunca mais foi a mesma depois daquele episódio, a exemplo do que aconteceu com a família Jewell (essa marca indelével é simbolizada em uma cena silenciosa e tocante: desconsolada, a mãe de Richard observa os algarismos anotados em um pote de Tupperware que havia sido coletado pela FBI).
É lastimável que O Caso Richard Jewell tenha adotado esse subterfúgio. Além de ser desnecessário para a trama (há outros meios pelos quais Kathy poderia conseguir sua matéria), terminou criando, pelo menos nos Estados Unidos, uma polêmica que desvia o foco dos muitos méritos do filme, como as atuações de Hauser, Bates e Rockwell, e das reflexões que Eastwood propõe. Nos vemos pensando sobre a nossa sanha em encontrar heróis e culpados, sobre as armadilhas que podemos criar para nós mesmos ou nas quais querem nos prender, sobre como – sobretudo na era das redes sociais – somos reféns da imagem e réus de julgamentos instantâneos.