O jornalista Henrique Ternus colabora com a colunista Rosane de Oliveira, titular deste espaço.
Em 2009, o então juiz de direito do Tribunal de Justiça do Maranhão, Márlon Reis, entregou na Câmara dos Deputados um projeto de lei de iniciativa popular de número 518/09, que no ano seguinte viria a ser a Lei da Ficha Limpa. A legislação impede que pessoas condenadas em segunda instância possam se candidatar e torna inelegíveis por oito anos políticos que tiverem seu mandato cassado.
É com base nesta previsão legal que o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi impedido de concorrer em 2018 — naquele momento, Lula estava condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro, mas as condenações acabariam anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021.
O mesmo dispositivo garante a atual inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que foi condenado por abuso do poder político e de uso indevido dos meios de comunicação nas eleições de 2022. Bolsonaro está impedido de concorrer até 2030.
A um ano da próxima eleição presidencial, deputados do PL articulam no Congresso um projeto de lei complementar para flexibilizar a Lei da Ficha Limpa e reduzir o período de inelegibilidade. Proposto por Bibo Nunes (PL-RS), o novo prazo seria de dois anos, no intuito de deixar Bolsonaro apto a concorrer em 2026.
Hoje advogado, Márlon Reis critica a tentativa de mudança na legislação da qual foi o principal idealizador.
Em entrevista à coluna, Reis afirmou que a alteração acabaria com a inelegibilidade, já que o período que o político ficaria impedido de concorrer seria semelhante ao intervalo entre duas eleições. Além disso, o ex-magistrado entende que a proposta do deputado Bibo Nunes é "grosseiramente inconstitucional".
Leia os principais trechos da entrevista
Qual a avaliação do senhor em relação à proposta de redução do período de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa?
É um modo que eles encontraram de não dizer que estão pedindo a pura e simples revogação da lei, porque com a inelegibilidade de dois anos não há inelegibilidade. O prazo é contado a partir da data da eleição, então na eleição seguinte o prazo já foi atingido pela forma de cálculo. Com o objetivo de recuperar a elegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro, o que de fato se está fazendo é acabando com o instituto da inelegibilidade por abuso de poder político e econômico nas eleições. Ninguém mais será afetado. Ela (proposta) é a própria revogação do instituto, por esse prazo, de tão esdrúxulo e irrazoável que ele é.
A Lei da Ficha Limpa está na sua melhor forma ou ainda cabem ajustes?
A Lei da Ficha Limpa é um divisor de águas no sistema de inelegibilidades. Antes, a legislação era toda feita para ser permeável e facilitar a participação de pessoas condenadas. Se exigia o trânsito em julgado da sentença condenatória, algo que nós conseguimos derrubar. Se colocava um prazo de apenas três anos, maior do que o que eles estão tentando fazer agora, e nós conseguimos que fosse aumentado para oito. Esse prazo de três anos permitia que uma pessoa que praticou um abuso de poder numa eleição municipal já pudesse participar da próxima, então também era uma pantomima. A quantidade de avanços é muito grande. Nós temos uma lei de inelegibilidades, e antes não tínhamos. Por isso é que defendemos essa lei de forma muito ferrenha e com todo o nosso entusiasmo, porque de fato ela agregou muito em termos de vantagens jurídicas para a integridade dos processos eleitorais.
Se aprovada no Congresso, essa lei complementar pode ser barrada no STF?
Da forma como ela está, não tenho a menor dúvida. Ela é grosseiramente inconstitucional porque representa um liberou geral. Qualquer candidato que praticar abuso de poder numa eleição sabe que não terá consequência disso em termos de inelegibilidade, porque dois anos não representa consequência alguma no cenário da forma como acontecem as eleições no Brasil. Por tão estapafúrdia e ilógica, essa lei poderia ser facilmente questionada no Supremo Tribunal Federal.
Ela (proposta) é grosseiramente inconstitucional porque representa um liberou geral. Qualquer candidato que praticar abuso de poder numa eleição sabe que não terá consequência disso em termos de inelegibilidade.
MÁRLON REIS
Advogado e ex-juiz, principal idealizador da Lei da Ficha Limpa
A nova legislação poderia ser retroativa a quem já está inelegível, ou valeria apenas para casos julgados a partir da aprovação da lei?
Esse debate, na verdade, não existe. O Supremo já decidiu que as normas sobre inelegibilidade, quaisquer que sejam elas, se aplicam a fatos ocorridos antes da vigência da lei. A norma penal é que precisa que a lei já exista antes do fato acontecer. Mas na inelegibilidade, não. Se uma inelegibilidade aumenta, ela atinge fatos pretéritos. Se ela diminui, também. Então, se essa lei passar e não houver a declaração da sua inconstitucionalidade, ela beneficiará o ex-presidente Jair Bolsonaro. Os que assinaram o projeto sabem disso, são inclusive do partido dele, o relator também é do partido dele e ontem (quarta-feira, 5) outro deputado do PL apresentou outro projeto também com a mesma finalidade. Há uma iniciativa do PL para garantir a participação de Jair Bolsonaro na eleição do ano que vem, mesmo que para isso tenha que destruir um dos principais pilares da Lei da Ficha Limpa. Isso mostra como existe uma ação orquestrada partidária. Está, portanto, totalmente ligada aos interesses eleitorais de Jair Bolsonaro. Não é outra finalidade.
Há uma iniciativa do PL para garantir a participação de Jair Bolsonaro na eleição do ano que vem, mesmo que para isso tenha que destruir um dos principais pilares da Lei da Ficha Limpa.
MÁRLON REIS
Advogado e ex-juiz, principal idealizador da Lei da Ficha Limpa
Que tipo de inseguranças jurídicas ou políticas o senhor acredita que possa acontecer em caso de aprovação dessa lei?
O Congresso terá aberto as portas para a participação eleitoral imediata nas eleições do ano que vem de um número que é impossível sondar, mas é muito grande, de condenados por abuso de poder político e econômico nas eleições. Do que nós estamos falando? De (condenados por) compra de votos, suborno de autoridades, compra de apoio político, ameaças a eleitores, desvio da máquina pública, dinheiro público para finalidades eleitorais. Haverá uma liberação de um contingente gigantesco de pessoas condenadas assim em todo o Brasil para participarem das eleições do ano que vem.
Qual sua avaliação sobre o argumento de que quem deveria decidir sobre um candidato estar apto ou não a ser eleito é o povo?
Por essa lógica seria possível, por exemplo, aceitar candidaturas múltiplas e sucessivas de um presidente da República, igual na Venezuela. Porque aí o povo é que decidiria se pode ou não. Por essa lógica, até os Estados Unidos estão errados de permitir apenas uma reeleição do presidente. Por essa lógica, caem todas as inelegibilidades, inclusive dos condenados por narcotráfico. Seria facílimo eleger milicianos e narcotraficantes, sob a força das armas e do dinheiro, do suborno. Esse é um argumento infantil, com todo respeito, e não comove ninguém que conheça um pouco do instituto da inelegibilidade, que é um instituto usado em absolutamente todo o mundo democrático. Não existe um país democrático que não tenha regras de inelegibilidade. Até a Convenção Interamericana de Direitos Humanos expressamente concede aos Estados membros a possibilidade de limitar candidaturas em virtude de condenações. Então não existe essa sociedade que o deputado Bibo Nunes defende. Uma sociedade anárquica sem limites.