Tenho a sensação de que, da minha tribo, sou a única que perdeu pela segunda vez o show de Paul McCartney. Na sexta-feira, quando a maioria dos meus amigos postava no Facebook a foto do ingresso para a noite histórica no Beira-Rio, eu me ocupava de assuntos comezinhos, como o futuro de Aécio Neves e a greve dos professores. No sábado, a sensação foi reforçada pela avalanche de posts no Facebook. Quase todos os meus amigos foram ao Beira-Rio. Para não parecer a ET de Varginha, não comentei com ninguém o quanto me parece estranho ouvir de alguém que choraria se encontrasse o ídolo. Não falei que acho bizarro acampar por três dias na frente do Beira-Rio para um show em que todos os que pagaram ingresso entrariam de qualquer forma, coisa que tenho dificuldade de compreender porque seria incapaz de fazer um sacrifício desses por quem quer que seja.
Antes que comecem a chover pedras e insultos pela minha insensibilidade, vou contar: eu não amava os Beatles nem os Rolling Stones... porque não os conhecia. Tendo nascido em uma aldeia longe da civilização, minha cultura musical na infância e adolescência era qualquer coisa próxima do zero. Meu pai ouvia a Rádio Guaíba para saber das notícias. À noite, sintonizava na Rádio Nacional para escutar música sertaneja. Não esses cantores esganiçados que nos fazem sentir vontade de pedir para descer do táxi ou do Uber quando o motorista não pergunta o que queremos ouvir, mas o velho sertanejo de Tião Carrero e Pardinho, de Pedro Bento e Zé da Estrada, de Cascatinha e Inhana.
Foi na primeira série do ginásio, com 10 anos, que ouvi falar pela primeira vez em Beatles e Rolling Stones. E foi na aula de religião, acredite quem quiser. Acho que isso explica um pouco por que achei um não-debate a discussão do ensino de religião nas escolas públicas. Para falar sobre paz, a freira minha xará que era professora de religião no Ginásio Taperense levou para a sala de aula a história do garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones e foi chamado da América para lutar na guerra do Vietnã. Aquele instrumento que sempre dá a mesma nota “rantantantam” ficou para sempre associado à guerra que eu conhecia pelas notícias do rádio. Os Beatles, à paz. Por isso, Imagine é uma das canções de que mais gosto. Os Beatles fizeram parte da minha adolescência, como da de qualquer pessoa nascida nos anos 1960, mas não aprendi a cantar suas canções. Estava ocupada tentando ganhar a vida e não tinha nem “aparelho de som” para ouvir seus discos.
No dia em que John Lennon foi assassinado em Nova York eu tinha 20 anos. A notícia chegou quando estava na TV Guaíba esperando para ser entrevistada pela Tânia Carvalho como uma das classificadas do Prêmio Habitasul de Revelação Literária. Quase todo mundo chorou como se fosse um parente próximo, menos eu que a essa altura já gostava dos Beatles, mas não tinha intimidade.
Não sou dessas pessoas que se ufanam da ignorância. Uma das minhas grandes frustrações é não tocar um instrumento e não conseguir cantar nem Parabéns a você sem desafinar. Não comprei ingresso para o show de Paul McCartney com a desculpa de que havia o risco de perdê-lo se bem naquele dia eclodisse uma nova crise em Brasília, mas a verdade é que tive medo de parecer um peixe fora d'água, porque não sei cantar nem Yesterday, nem Hey, Jude, nem Love Me Do. Perdi o show do ano, talvez a última chance de ver um beatle. Mas fiquei feliz com a felicidade dos meus amigos que passaram algumas horas no paraíso na sexta-feira à noite.