Sempre que chega a metade de outubro, sinto vontade de reunir minhas mais queridas professoras para dizer o quanto sou grata pelo que aprendi com cada uma. Primeiro na escola rural em que a professora Celmira, uma jovenzinha de nem vinte anos, dava conta de uma turma de crianças do primeiro ao quinto ano, na mesma sala de aula. Seus únicos instrumentos de trabalho eram o giz, o quadro negro e um imenso amor pela tarefa de ensinar. O meu, um caderno, um lápis, uma borracha, um livro didático (às vezes de segunda mão) e um infinito desejo de aprender.
Em vão tenho vasculhado os sebos virtuais em busca dos livros em que comecei a conhecer o mundo, nos anos 1970. No do segundo ano tinha o poema O Telégrafo, uma abstração para a professora e para os alunos que nunca saíram daquela aldeia sem energia elétrica e em que o rádio era o único meio conhecido de comunicação à distância.
No terceiro e no quarto ano, fomos apresentados a Casimiro de Abreu (Meus oito anos), Malba Tahan (Os cegos e o elefante) e a um certo Moisés de Carvalho Romero, autor de Saudades da mamãe, um poema de uns 15 quartetos que sei de cor até hoje: "Mamãe você se recorda, de quando eu era menino e saía sem destino à procura de brinquedos...". Havia também o conto A Pororoca, fenômeno pavoroso que nenhum de nós era capaz de entender, porque não conhecíamos o mar e não tínhamos ideia do que fosse um rio amazônico. Seria possível existir um rio maior do que o Jacuí?
Do livro Admissão ao Ginásio, o do quinto ano, sem ilustração na capa, lembro especialmente do pretérito-mais-que-perfeito, de uma frase de Líbero Badaró – "Morre um libertador, mas não morre a Liberdade" – e de um verso de Olavo Bilac que ficou gravado feito tatuagem: "Lembras-te, Rosa? E ao sol de outubro nos amamos". Era só esse verso. Hoje tenho dúvida se o organizador do livro era um romântico, um ingênuo ou um subversivo disfarçado, que resolveu provocar o regime militar incluindo em um livro para crianças de 10 anos versos de um poema erótico. Pobre professora Celmira se naquele tempo, auge da repressão, tivesse que explicar o poema inteiro, que aqui transcrevo para dar ideia do embaraço do qual ela escapou:
Última Página
Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos
Numa palpitação de flores e de ninhos.
Doirava o sol de outubro a areia dos caminhos
(Lembras-te, Rosa?) e ao sol de outubro nos amamos.
Verão. (Lembras-te Dulce?) À beira-mar, sozinhos,
Tentou-nos o pecado: olhaste-me... e pecamos;
E o outono desfolhava os roseirais vizinhos,
Ó Laura, a vez primeira em que nos abraçamos...
Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos,
Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos,
(Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor...
Carne, que queres mais? Coração, que mais queres?
Passas as estações e passam as mulheres...
E eu tenho amado tanto! e não conheço o Amor!
Graças à dedicação da professora Celmira, ao empenho do meu pai em tomar a tabuada e ao meu esforço pessoal, passei no exame de admissão ao ginásio e descobri outro mundo: uma professora para cada matéria. Inês Bauermann (Português), Lena Maris Crestani (História e Moral e Cívica), Catarina Simon (Ciências), Zenide Theisen (Matemática), Arlete Heinrich (Geografia) e uma freira, minha xará, que nas aulas de religião nos ensinava a não sucumbir ao pecado, mais insinuando do que esclarecendo o que era proibido pelas severas leis de Deus.
Tantas outras vieram depois e deixaram suas marcas: Maria de Lourdes Fritsch, Carmen Rotta, Sônia Cavalli, Sandra Coletti, Bernadete Dal Molin. Agradeço a essas mulheres generosas e a todos os outros professores que passaram pela minha vida.