
Arcebispo de São Paulo, o cardeal dom Odilo Scherer chegou a Roma na quinta-feira (24) perto do meio-dia. À tarde já estava na Basílica de São Pedro para prestar sua reverência ao papa Francisco, com quem havia se encontrado, em vida, pela última vez em 12 de fevereiro. O religioso de 75 anos, nascido em Cerro Largo, no Rio Grande do Sul, participa do segundo conclave. Ele estava na reunião do colégio cardinalício que elegeu Francisco, em 2013. Hospedado no Colégio Pio-Brasileiro, a casa do clero brasileiro em Roma, ele concedeu a seguinte entrevista à coluna.
Qual foi seu sentimento ao orar na frente do corpo do papa Francisco?
Antes das nove já estava na Basílica. Depois participei da reunião Geral dos Cardeais até o meio-dia. Sempre causa uma impressão. De repente, a gente está diante do Papa falecido. Quando a gente o conhecia antes: todo vivo, cheio de dinamismo, de vitalidade. Depois, vendo a multidão. Às 9h, já tinha uma verdadeira multidão na basílica e na praça. E assim continuou durante o dia todo. Muita gente que está vindo a Roma para estar com o corpo do papa Francisco e para participar da missa, do funeral.
Chama a atenção a presença de muitos jovens.
Há muitos adolescentes, crianças também. Pais com crianças que estão na fila, passando pela Basílica de São Pedro. É uma devoção e a expressão de um carinho que o povo teve e tem por Francisco, com o qual se identificou muito. Por isso, agora, aqui, estão as expressões desse carinho.
Quando foi a última vez que o senhor falou com o Papa?
Foi na última audiência pública que ele teve. Em 12 de fevereiro. Era uma quarta-feira na Sala Paulo VI. Havia muita gente, e o Papa já não estava bem. A gente via que ele estava claramente sofrendo. Ele estava abatido. Mas manteve a audiência. Depois, saudou as pessoas. Na ocasião, eu fui o único cardeal presente na audiência. Tinha uns três, quatro bispos. E uma multidão de gente. Foi a ocasião que eu saudei pela última vez.
O senhor pediu para se aposentar do cargo de arcebispo de São Paulo, mas o papa Francisco pediu para que ficasse um pouco mais de tempo. Por quê?
Porque eu já completei 75 anos. E o Papa pediu para a gente continuar mais algum tempo à frente da arquidiocese. Mas isso acontece com todos os cardeais. A não ser que algum cardeal, por idade avançada tenha alguma doença e peça para ser aliviado o quanto antes da sua responsabilidade.
O que Francisco representou para o mundo e para a Igreja?
Foi um Papa que levou adiante as propostas do Conselho Vaticano II para a Igreja. E, portanto, apontou muito na linha de uma Igreja missionária. É uma ideia que ele repetiu muito e traduziu de muitas maneiras em várias iniciativas. Igreja missionária. A Igreja se voltar, não para si mesma, mas para fora. Ir ao encontro das pessoas. Segundo, a Igreja acolhedora. Igreja misericordiosa, aberta a todos, acolhedora a todos. A Igreja não pode ser considerada um clube dos perfeitos, um clube dos melhores. A Igreja de Cristo é onde deve haver lugar para todos. Cera vez ele usou a expressão para todos, todos, todos. Três vezes. O que significa, de fato, uma existência. Isto é, a Igreja não é só dos santos, mas também dos pecadores. Todos, naturalmente, são chamados à conversão, todos chamados ao seguimento de Cristo. Ultimamente, estão falando do conceito de sinodalidade, Igreja sinodal. A Igreja sinodal é aquela na qual todos procuram caminhar juntos, estar unidos. Não Igreja de partidos, não Igreja dividida em guetos antagônicos. Igreja que se deixa invadir pela mentalidade, digamos assim, das crises sociais, onde se colocam uns contra outros. O Papa esteve muito interessado nos pobres. Ele fez gestos muito fortes para a defesa, valorização dos pobres, dos migrantes, dos refugiados, dos rejeitados e de todas as pessoas que ele chamava de descartadas, que a sociedade de consumo, de alguma forma, descarta e não toma cuidado. Então, muito nessa linha de uma Igreja do cuidado, de braços abertos. Como ele usou a expressão: a Igreja como um hospital de campo em tempos de guerra. O hospital de campo está lá onde a guerra acontece, onde existem os feridos para socorrer, para ajudar os caídos. Assim deve ser a Igreja. E não ter medo de se expor para socorrer todos os feridos. A proposta do Papa é que o mundo caminhe para a superação das suas grandes questões, que são a guerra e a paz. Questão do desenvolvimento econômico e a participação de todos.
Como fazer isso?
Tem que mudar a lógica, a ética da economia, a ética da convivência social, a partir de um conceito fundamental. O conceito de humanidade. O Papa insistiu muito. Somos todos membros de uma única família humana. E por isso, uma família de irmãos, onde os povos não devem se tratar como se um fosse inimigo do outro. Ou um explorando o outro. Mas todos olhando com o respeito e a noção de fraternidade em relação às outras pessoas. A única coisa que pode ajudar a mudar essa ética do maior ganho, não importando se o outro está perdendo.
Também na área ambiental?
O Papa bateu muito nessa questão ambiental. A ética em relação à natureza, ao ambiente da vida. Temos de ter a noção de que a existência do planeta como casa comum, como casa de toda a família humana, requer que todos tenham um olhar solidário. Não podem uns pretender tudo e outros ficar sem nada. É um cuidado para que essa casa continue habitável, arrumada. Não só para alguns, mas para todos e também para as futuras gerações.
É possível esperar que o papa eleito pelo conclave, do qual o senhor participará, siga os passos de Francisco?
Sim, é natural que as pessoas imaginem o próximo Papa, se deve ser como esse ou continuar a linha deste, as preocupações que ele tinha. É normal que haja esse pensamento e esse sentimento. Mas a gente também tem de ser realista. Primeiro, um papa não vai desfazer o que outro fez. Existe continuidade. Isso é seguro. Mesmo se com aspectos, destaques diferentes, mas existe uma continuidade. E, sobretudo, o Papa não é um autocrata, que pode fazer como ele bem entende. O Papa é um servidor da Igreja. É o primeiro que deve estar a serviço e obedecer à Igreja. Isto é, estar a serviço da missão da Igreja. E, claro, aqui existe muita possibilidade de o Papa traduzir a missão da Igreja também a partir da sua visão. Que tenha maior sensibilidade para isso, para aquilo, dependendo das necessidades do momento. Então, isso eu queria deixar claro: não haverá solução de continuidade. Não importa qual é o Papa. Haverá um outro Papa que não será Francisco. Também esse é um ponto que a gente precisa ser realista. Quem for escolhido terá sua personalidade, seu jeito, sua cultura, sua origem. O próximo Papa será João, Antônio, Pedro, sabe lá como é que se chamará? Mas vai ser ele. E isso é a riqueza também da Igreja. É a beleza. Porque, como diz um ditado bem conhecido na Igreja, para cada época o Papa quem precisa. E para isso nós estamos também rezando. A Igreja vai rezando ao Espírito Santo que oriente na escolha, no discernimento sobre quem deve ser essa pessoa. E sobre isso agora os cardeais também estão refletindo, fazendo a avaliação, as considerações sobre o nosso tempo, sobre a Igreja, sobre os desafios da missão e sobre a situação do mundo atual. E, naturalmente, o Papa a ser escolhido deverá estar em condições de exercer o seu ministério tendo presente essa pauta. Aliás, é o que o Francisco fez: quando o questionavam por que ele fazia isso bem. Ele dizia? “porque isso lhe foi encarregado pelos cardeais quando se reuniram para a escolha do novo Papa”. E levantaram essa questão que deveria ser parte da missão do próximo Papa. Francisco fez isso: assumiu muito a pauta que lhe foi colocada em mãos, embora ele não soubesse que iria ser Papa. Mas essa pauta foi praticamente gerada pelos cardeais durante as semanas de reflexão antes da eleição do Pontífice. Não vai ser diferente agora.
O fato de 80% do colégio de cardeais ter sido escolhido por Francisco significa que o futuro Papa seguirá a linha do argentino?
Isso pode até ter sua influência. Mas, em princípio, o Papa não é Papa para servir o anterior. Papa é Papa para servir à Igreja de Cristo.
Todos os cardeais que entram no conclave podem receber votos. O senhor está preparado para ser Papa se essa for eleito?
Veja, não são só os cardeais. Todo bispo também é candidato. Aliás, todo padre também é candidato.
Qualquer católico, né?
Qualquer católico batizado, homem, sacerdote. Então, mesmo se um leigo casado fosse escolhido e se aceitasse, ele imediatamente seria chamado, se lhe aceita. Ali mesmo, sem ser anunciado ao público, ele seria ordenado bispo para ser bispo de Roma, isto é, Papa. Essa é uma hipótese muito remota, mas que seja um bispo que não está no colégio dos cardeais não é tão remoto. Já aconteceu na história. Até padre, monge. Na Idade Média, na igreja dos primeiros séculos, aconteceu mais vezes de ter sido escolhido um Papa que era algum padre. Até diácono. Hoje, porém, é mais lógico que o Papa seja escolhido entre os cardeais. O escolhido vai fazer as contas com a sua consciência. Se aceita ou não aceita, porque não é obrigado a aceitar. Agora, sinceramente pensando e considerando, se nós rezamos, entramos no conclave rezando, pedindo ao Espírito Santo que nos ilumine, se a igreja toda, desde agora, já está rezando, está pedindo a Deus que a inspire e a ilumine, se alguém é escolhido, como pode dizer: “Ah, eu não quero”? Então, isso seria dizer: “Acho que o Espírito Santo errou”. Portanto, essa surpresa, se ela acontece, naturalmente, será um susto para qualquer um. Mas também é o momento em que (o escolhido) se coloca na extrema humildade e realismo, dizendo: “Meu Deus do céu, o que Deus quiser que seja˜. Mas, claramente, a gente não espera isso.