O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
Por apenas um voto de diferença, a ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha foi eleita presidente do Superior Tribunal Militar (STM). Ela será a primeira mulher a ocupar o cargo, com mandato entre 2025 e 2027.
Entre os objetivos da ministra está tornar o STM um órgão mais inclusivo, abordando pautas de direitos humanos e das mulheres. Ela conversou com a coluna.
Quais são os principais desafios do cargo?
O maior desafio que a Justiça Militar, tem enfrentado é ingressar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão extremamente importante, que edita resoluções, recomendações, protocolos e que, inclusive, nós nos submetemos. Não é justo, e eu diria que é inconstitucional, a ausência de assento em um órgão de controle da Justiça mais antiga do Brasil, que é a Justiça Militar. Esse é o primeiro embate, o grande desafio que encaro. Também devemos promover atualizações. Muitas já foram feitas, mas a nossa legislação carece de um arejamento legislativo para que possa se adequar ao novo Direito Penal, ao constitucionalismo fraternal, sem ouvidar, obviamente, dos pilares que sustentam as Forças Armadas, a hierarquia e a disciplina.
Que tipos de atualizações?
A questão das drogas é um exemplo. Tem de ser tratada de forma diferenciada para aquele que é adicto, para aquele que é dependente químico, daquele que utiliza para recreação - ou então aquele que utiliza a cannabis para fins medicinais. São situações diferentes e que merecem tratamentos distintos. Uma outra questão é a da violência contra a mulher. Entendo que não é um crime militar, mas um crime que tutela outros bens jurídicos, como a família, a própria mulher, as crianças, a infância e a adolescência. Julgamos as violências contra as mulheres em três hipóteses: quando o autor da violência é militar e a mulher vitimizada é militar; quando foi a violência desferida dentro de uma vila militar ou dentro de um quartel; ou ainda quando for contra a funcionalidade das Forças Armadas. Basicamente, a violência contra a mulher, doméstica, de gênero, não é uma matéria que deva ser julgada por uma Corte militar. É uma matéria que deve ser julgada, pela vara de violência doméstica, que é um foro especializado e que foi criado com esse intuito. Não há erro jurídico algum julgarmos a violência doméstica. Contudo, acho equivocado. Como mulher, como magistrada, vejo que quem tem de apreciar esse tipo de delito é a vara de violência doméstica, que foi criada com esse propósito, e mais do que isso, que tem várias competências para evitar via crucis da mulher vitimizada como o pedido de pensão, de afastamento do agressor do lar, de ir para a casa-abrigo, de concessão de divórcio, separação de corpos; Tudo isso não podemos conceder porque nós somos uma corte criminal. Que cada foro julgue aquilo que lhe compete. Somos uma Justiça militar e nós temos que julgar crimes militares, não crimes dos militares, porque eventualmente civis também cometem crimes militares. Cada foro tem a sua competência. A violência doméstica, que é violência de gênero, de uma forma geral, não é uma matéria para ser apreciada por um foro militar, mas sim por uma vara especializada em acolher a mulher, dar a ela uma rede de apoio e conceder a ela medidas protetivas que são medidas cíveis, que uma vara penal não pode.
A senhora é conhecida por tratar de assuntos ligados às pautas das mulheres e dos direitos humanos. Como tratar isso na Justiça Militar?
Os direitos humanos são fundamentais em qualquer área da Justiça. As próprias academias militares têm nos seus currículos, para ensinar aos cadetes, o respeito e a garantia aos direitos humanos. Isso é um princípio basilar da Carta Cidadã, que foi inaugurada em 1988, e que fala sobre o Estado democrático, o Estado igualitário, o Estado de direito. É fundamental que os direitos humanos sejam observados em todas as constituições, principalmente no Poder Judiciário. Como podemos dizer do direito, em abstrato ou em um caso concreto, se os direitos humanos não forem o fim de tudo isso? Não tem sentido. Direitos humanos e Justiça, de forma geral, e Justiça militar, de uma forma específica, combinam muito e andam de mãos dadas.
Qual a importância de ter uma mulher como presidente do STM?
O grande diferencial dessa eleição, apesar das dificuldades, do acirramento da disputa, é o fato de as mulheres não terem direito a condições de acesso igualitárias. Não existem lugares pré-estabelecidos em uma sociedade legítima, democrática. Não podemos, mulheres, estarmos confinadas em lugares pré-estabelecidos que a sociedade patriarcal determinou. Com essa eleição, brinco que quebrei o teto de vidro, porque, na verdade, o que nós mulheres sofremos não é um teto de vidro, é uma porta de vidro. Existe uma falsa ilusão de que temos acessos igualitários, quando, na verdade, não é assim. As minorias são desprivilegiadas, segregadas, excluídas, e é preciso muita luta para romper esses paradigmas injustos. É a primeira vez que uma mulher é eleita para a Corte de Justiça mais antiga do Brasil, de 216 anos. Foi criada por dom João VI, quando ainda era príncipe regente, quando ele aportou no Brasil, saindo de Portugal. Essa eleição mostra que temos que lutar para reivindicar aquilo que nos é de direito. Nada é dado gratuitamente. Os direitos civis não são dados espontaneamente por aqueles que detêm privilégios, mas o que não significa que eles não possam ser quebrantados. As mulheres cada vez mais reivindicam seus espaços de poder, posições de poder, o próprio CNJ é protagonista nisso. Lugar de mulher é onde ela quer estar. Se ela quer estar em casa, cuidando dos filhos, é um trabalho árduo e é um direito dela. E se ela quer sair e enfrentar o mundo corporativo, o mundo do trabalho também é, e as chances têm de ser iguais. Não pode haver privilégios, porque o critério que conta é o meritório. Minorias, afrodescendentes, mulheres, indígenas ainda sofrem outros cortes interseccionais. Sou uma mulher branca e enfrentei dificuldades, mas a dificuldade de uma mulher negra, de uma mulher hipossuficiente, ainda é muito maior do que a minha. ETudo isso tem de ser levado em consideração por um Estado democrático, para que a igualdade efetiva, a isonomia real e não apenas formal que está no texto da Constituição, se implemente.
Como a senhora vê a presença de militares na política?
A política e Forças Armadas não se misturam, porque, quando a política entra dentro dos quartéis, a hierarquia e a disciplina sofrem e há abalos. Nesse sentido, o nosso constituinte originário foi sábio quando estabeleceu, e isso vale para o mundo todo, não apenas para o Brasil, as chamadas relações especiais de sujeição aos militares. Os militares têm os seus direitos civis, os seus direitos humanos, muito mais coartados, muito mais comprimidos, do que os civis. Por que isso? Porque ele carrega armas, é investido do suporte de armas, do monopólio da força legítima, pelo Estado. Então, homens que impunham as armas da nação, têm de sofrer um disciplinamento muito maior. Os militares não podem se sindicalizar, não podem pertencer a partidos políticos quando estiverem na ativa, não podem fazer greve, não podem se amotinar. E se você fizer um estudo comparativo entre o Código Penal comum e o Código Penal Militar, você vai ver que o Militar é muito mais rígido do que o comum. As medidas de não persecução penal, do Direito consensual penal, que evitam a ação penal, não são contempladas no foro castrense. E isso por quê? Porque é preciso que haja uma estrita observância da hierarquia e da disciplina dentro dos quartéis, sob pena de comprometer o Estado democrático de Direito e ameaçar a sociedade civil. Então, nesse sentido, os militares, como legalistas que são, eles têm a consciência de que a política não pode invadir os quartéis. E, na verdade, aqueles que defendem a politização das Forças Armadas são poucos, porque a história brasileira prova que ela nunca funcionou bem. Não funcionou na República Velha, não funcionou em 64 e não funcionou recentemente. Então, nós temos realmente que seguir um norte constituinte, o que, como diria o doutor Ulysses (Guimarães), está escrito no livrinho. E no livrinho consta, com todas as letras, que não nessas palavras, mas nos seus princípios, nos seus fundamentos, que os militares e a política, que são duas, vamos dizer assim, instituições importantíssimas para o bom funcionamento do Estado, da nação, da pátria, não podem se misturar.
O ano que vem deve ser julgado os crimes dos militares envolvidos na tentativa de golpe. Qual a expectativa para o ano que vem?
Estou convicta que quem julgará esses eventuais delitos que forem denunciados, que a Polícia Federal levantou indícios, como tentativas de homicídio e etc., não seremos nós, porque são crimes comuns, que atentam contra o Estado Democrático de Direito. Então será o Supremo Tribunal, acredito eu, mais especificamente o ministro Alexandre de Moraes, que é o juiz prevento para essas ações. Na verdade, foi ele quem atuou primeiramente na primeira causa e o Código de Processo Penal, tanto o militar como o comum determinam que o juiz que atua primeiramente na causa será o condutor dos demais processos afins e o 8 de janeiro está ligado, obviamente, a essas tentativas, se forem realmente confirmadas que existiram. O que nós podemos julgar são os crimes militares conexos ou as representações de indignidade ou incompatibilidade, mas isso depois de condenações, depois do trânsito em julgado, quando a pena for superior a dois anos, então tem que se esperar um pronunciamento do STF, a corte adequada. É aquilo que nós estávamos falando, qual o tribunal que julga o quê, nesse caso seria o Supremo Tribunal Federal, para poder vermos como é que nós vamos atuar em termos processuais.
Como a senhora quer chegar no fim do seu mandato?
Acho que o meu maior objetivo é tornar a Justiça Militar uma justiça mais inclusiva, uma justiça que abrigue a alteridade e as diferenças, onde todas as minorias sejam acolhidas e o Estado Democrático de Direito seja realmente homenageado pelas nossas decisões e pela minha presidência. Acima de tudo e antes de tudo, o que eu quero deixar na minha gestão são os meus aplausos à legitimidade e a minha retidão em busca do aperfeiçoamento como magistrada e agora como presidente da mais antiga corte do Brasil, ao Estado Democrático de Direito, que é o bem maior de toda a nação.