Na avalanche de reportagens que a imprensa brasileira vem publicando sobre os 10 anos dos protestos de junho de 2013 há algo em comum: a dificuldade de compreender o fenômeno e as dúvidas sobre a relação causa e consequência do fenômeno. É confortável olhar pelo retrovisor, de acordo com a lente ideológica de cada um, e ver relações entre o aumento da passagem, o "contra tudo e contra todos", a Lava-Jato, captura do fenômeno das ruas pela direita, o impeachment de Dilma e a prisão de Lula, a eleição de Jair Bolsonaro e 8 de janeiro de 2023. Mas talvez uma década seja um recorte temporal curto demais para ser analisado com distanciamento, e só tenhamos a real dimensão do cataclisma social e político que varreu o Brasil, iniciando por Porto Alegre, daqui mais 10 anos. Ou não.
A miopia que só o tempo é capaz de operar, no entanto, não impede o exercício da reflexão sobre a efeméride. Nesse caso, ampliar a perspectiva ajuda: histórica e geográfica.
No Brasil, o fenômeno das ruas calhou de ocorrer em junho de 2013. Mas poderia ter sido antes ou depois. Nos Estados Unidos, foi em 2011, com o Occupy Wall Street. A Espanha viveu no mesmo ano os Indignados. Um ano antes, na Tunísia, um jovem feirante colocou fogo no próprio corpo em protesto contra o sistema injusto, dando início à derrubada, uma a uma, das ditaduras árabes do norte da África e Oriente Médio. No Chile, foi em 2019, dias antes de o mundo conhecer a covid-19.
Os contextos são diferentes, mas há pontos em comum: busca por igualdade econômica e mais representatividade política; revolta contra o poder constituído; um movimento sem lideranças constituídas que se aproveitava da nova dinâmica digital, quando as redes sociais contribuíam para furar os muros e antes de elas próprias ditarem suas verdades.
Nos diferentes quadrantes do Ocidente, o clamor das ruas encontrou um establishment despreparado para lidar com a crise e a imprensa e a Academia batendo cabeça para compreender o fenômeno. Precisou alguém, em um cartaz, dizer que "não era só por 20 centavos" para que a ficha caísse. Ou que governos de várias cidades recuassem na intenção de aumentar as tarifas do transporte público, sem que ninguém voltasse para casa, para nos darmos conta de que algo maior era gestado.
O momento exato em que a direita apropriou-se dos posts virtuais e dos cartazes das ruas é talvez, do ponto de vista sociológico e político, o mais difícil de identificar. Mas, lá pelas tantas, movimentos como o MPL eram emulados pelo outro lado, o MBL. O desgaste do PT no poder, a corrupção, o contexto da crise econômica, a descrença na política tradicional abriram as portas para políticos antiestablishment.
O junho de 2013 escancarou no Brasil a caixa de Pandora, expressou o mal-estar social latente. Mas, como em outras partes do mundo, seu resultado é ainda algo a ser digerido: nos EUA, surgiu Donald Trump; na Espanha, houve o enfraquecimento dos partidos de centro. Em ambos, polarização. No mundo árabe, caos social na Líbia, Iêmen e Síria e o retorno ao autoritarismo no Egito e Tunísia.
No Brasil, ao contrário do que bradavam esquerda e direita em junho daquele ano, o sistema não foi reformado. E, ao contrário dos outros países, onde as forças tradicionais foram esfareladas, por aqui, o centrão não ganha eleição presidencial, mas continua no poder.