Uma das assessoras mais próximas de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2007, no Palácio do Planalto, Clara Ant está lançando um livro contando sua proximidade com o agora presidente eleito. Mais do que funcionária de seu governo, ela é amiga de Lula há 40 anos, dos tempos em que atuavam como sindicalistas em São Bernardo do Campo (SP).
Na obra intitulada "Quatro décadas com Lula - O poder de andar junto" (Autêntica Editora), a arquiteta nascida na Bolívia e radicada no Brasil, ex-deputada estadual por São Paulo, busca mostrar os bastidores do poder, o dia a dia do então presidente, as viagens e a prisão no âmbito da Lava-Jato.
Clara me recebeu no Brasília Palace, o primeiro hotel da capital federal, inaugurado em 1958, para uma entrevista sobre a obra e suas expectativas para o futuro governo.
A senhora conta que pensara em escrever o livro em 2017, antes da prisão de Lula. Por quê?
Tenho a impressão de que tem a ver com minha história familiar o fato de eu ter percebido o risco que a democracia estava vivendo no Brasil desde o golpe de Dilma Rousseff (o impeachment). Aquela cena da votação da cassação de Dilma era um anúncio poderoso do que estava vindo: o desrespeito à democracia, à pessoa dela, à liberdade de ofender, tudo isso está contido naquela votação. Foi-se embora a Constituição, foi-se embora a legislação, os direitos. Foi um ato explícito de desdém com a democracia, tão eloquente. Quem não percebeu ou se fez de desapercebido, a partir daí não pode dizer que não estava entendendo o que estava acontecendo no país. Cada discurso ali, "por minha mãe", "pelo meu pai", "por Deus", não tinha conteúdo que justificasse a cassação, e cada um deles ofendia mais a Dilma, a democracia e a Constituição. Ali foi um marco, que me apavorou, onde deu para perceber que o Brasil tinha entrado em um curso contra si mesmo. Comecei a perceber nas entrevistas de rádio, nas expressões que muitos jornalistas e entrevistadores adotavam, que o negacionismo começava a valer em nosso país. Como sou filha de judeus poloneses que sobreviveram ao nazismo, aquilo lá fez florescer em mim um alerta, algo que me perturbava. Sempre achei antissemitismo, o nazismo, a falta de liberdade, coisas ruins, mas naquele momento algo começou a se mexer dentro de mim. E esse alerta me colocou na posição de obrigatoriedade de relatar a minha história, do Brasil e do Lula. Houve uma tentativa de excluir o nome de uma liderança que se construiu na luta por direitos, pelos mais vulneráveis e pelo trabalhador de viver dignamente. Foi o momento em que me vi no dever de escrever.
A senhora chegou a falar para Lula que ia escrever, pediu autorização?
Não, só perguntei se ele queria escrever junto. Ele falou "Não, para você ter liberdade total". Eu falei: "Será que é para eu ter liberdade total ou você não quer compartilhar comigo as minhas bobagens?" (Risos)
Lula já leu o livro?
Antes, com certeza não. Se leu agora, não sei.
A senhora fez uma opção de contar boa parte de sua vida pessoal e política, detalha a luta sindical, a criação do PT, os projetos implementados e só então vai para o governo Lula. Por que essa decisão?
A história é feita de pessoas e trajetórias pessoais. Cada pessoa tem a sua colaboração, seu tijolinho que vai sendo colocado nesse edifício, que é o resultado dessa participação de tanta gente. Segundo porque eu vi, vivi, eu estava lá. Nesse processo é que se construiu a proximidade entre Lula e eu, o processo do fazer junto, de enfrentar junto. Tem vários modos de contar a história, um historiador tem o seu rumo, uma pessoa como eu, que fiz um testemunho, só poderia ser compreendida por quem lê a partir do momento em que eu expusesse por que estava fazendo esse testemunho. Eu, Clara, eu mulher, branca, judia, nascida na Bolívia, filha de pais poloneses e judeus perseguidos pelo nazismo. Muita gente fala: "Agora entendo porque você conseguiu enxergar antes da gente" (os riscos à democracia). Eu tinha uma história. A família do meu pai perdeu mais de 40 membros em uma cidade na Polônia, perto da Ucrânia. Meu pai tinha um irmão que desapareceu. Faz parte da minha vida ser contra a intolerância, o nazismo.
A senhora diz que escrever o livro foi uma resposta às pessoas que sempre perguntam como é o jeito de Lula trabalhar, de se relacionar, de decidir. O que as pessoas não sabem sobre o presidente eleito?
Muita coisa. A maioria das pessoas conhece o Lula falando, mandando mensagens, discursando ou debatendo. Muitas das fotos do Stuckert (Ricardo Stuckert, fotógrafo de Lula) mostram isso: as mãos estendidas para pegá-lo. Lula, depois das atividades, volta com o pulso todo arranhado, porque as pessoas querem mexer nele. A pessoa está ali tentando agarrá-lo, vão com tudo, com as unhas, porque é uma busca intensa de proximidade com ele. E ele gosta, se entrega. Essa parte você vê muito nas fotos do Stuckert, mas você não vê no dia a dia. Dificilmente, nos noticiários aparece isso. Tento fazer chegar a todos e todas que lerem meu livro como é essa proximidade.
Como é essa proximidade?
Se ele estiver conversando com você, em dois minutos, ele vai pegar na sua mão, ele cria esse elo. Ele é uma pessoa que não consegue ficar sozinha. Às vezes, no Instituto Lula, não tinha encontro marcado, ele chamava eu ou outros diretores. A gente perguntava: "O que você quer?" Ele simplesmente dizia: "Senta aí". Ele ficava lendo, não falava com ninguém, mas você estava lá. Atribuo à história dele de ter nascido em uma casa que tinha sete irmãos. Nunca, nenhum deles, ficou sozinho. quando o pai foi embora, estava a mãe e os irmãos. E quando ele foi embora, em um caminhão de boia-fria, tinha 30 pessoas na carroceria. Lula carrega isso. Fui uma vez na casa deles, no começo nos anos 1980, quando eles moravam em uma casa comprada pelo BNH no Jardim Lavínia, em São Bernardo do Campo. Eu chego lá, estava dona Marisa, ele, já tinha um companheiro do sindicato tomando café, às 7h da manhã. E ia chegando mais:, chega um, que quer contar que brigou com a mulher, e outro que vai contar algo que ocorreu na diretoria que chateou alguém. Essa é uma característica muito forte de Lula. Ele acolhe. Numa passagem do livro, menciono um trecho que Fernando Gabeira escreveu no primeiro livro sobre caravanas. Havia dois ônibus, um da imprensa e outro da comitiva. Gabeira estava como jornalista na caravana do Sul, e ele relata que um fenômeno aconteceu: muitos prefeitos e vereadores do PDT se mudaram para o PT nas caravanas. Ele diz que resolveram transitar da proximidade com um líder solitário, que era o Brizola (Leonel Brizola), para um líder coletivo, que era o Lula.
A senhora previu que Lula precisará de "muito tricô" para negociar com diferentes forças. A transição já mostra que a articulação vai ser muito difícil com o Congresso.
Vai ser muito difícil, tem de articular forças que até ontem nem se falavam, mas pode vir a ser o melhor governo que o Brasil já teve. A liga é a confiança na democracia, é isso que levou à agregação dessa gente toda. Uns mais, outros menos. Uns arrependidos, outros menos. Não importa, todo mundo está se entregando para reconstruir o Brasil. Principalmente a democracia, a vida das pessoas, a dignidade de viver, os direitos básicos para uma família sobreviver, salário mínimo... Isso é o patamar inicial. Por isso, é possível que venha a ser o melhor governo. Vai acontecer? Não sei. Mas é possível. Agora, vai ser difícil. Imagina 14 partidos. Se for para deixar como estava, não precisava ter juntado tanta gente. Só faz sentido o Brasil se recompor para colocar o pobre no orçamento. Lula fala isso há pelo menos uma década: o pobre tem de entrar no orçamento, e o rico no imposto. Vai ser difícil? Vai. É possível? É, porque o ponto de partida é a defesa da democracia, a dignidade da vida.
Vocês têm se falado?
Encontrei com ele na apuração. A gente rapidinho se abraçou, foi muito legal, aquele momento tão esperado e delicado. De lá para cá, a gente se falou duas vezes por telefone. É possível que, nessa semana ou na próxima, a gente tenha um encontro.
Como está o astral de Lula?
Não sei onde esse homem arruma energia, mas que a energia dele está boa, está muito legal. Ele tem um entusiasmo contagiante, uma energia que resgata em meia hora. De repente, se está cansado, dá uma cochilada em um canto e volta melhor do que foi. É um ser humano fortaleza. Acho que ele está muito feliz também exatamente pela responsabilidade que tem, gosta de dificuldades, se sente bem pensando na superação. Faz parte do DNA dele, gosta de colocar o desafio um pouco além do que já tem. Esse o combustível que toca o dia a dia do Lula.
A prisão mudou Lula?
Quem não mudaria com um processo desses? Encontrei com ele só uma vez durante a prisão, no velório do neto (Arthur Lula da Silva, sete anos, que morreu em março de 2019, vítima de meningite). Acho que ele aumentou a intensidade dos desafios que se coloca. Ele teve pela frente tanta maldade, arapucas, que evidentemente que teve de se preparar para enfrentar. Agora, não pense que é algo que nasceu na prisão. De 2014 em diante, a partir do momento em que o MP começou a questionar as palestras que ele deu, a partir daí o inferno diário estava instalado. Lula nunca teve que gastar tantas horas da vida dele para conversar tanto com advogado. E o cenário todo de deificação de Moro (Sergio Moro) e da Lava-Jato, criou uma imagem de que estavam lá o herói e o presidiário. Desfazer essa imagem é muito difícil tanto que Moro foi eleito senador. Mostra um pouco dessa arapuca que a sociedade criou contra si mesmo.
Como a senhora pretende colaborar no futuro governo? Já falaram sobre isso?
Acho que esse é um assunto entre eu e o Lula.