Antes de tudo, uma explicação importante: nos Estados Unidos, como deveria ser em qualquer democracia, a divisão entre os poderes do Estado é muito respeitada. Assim, o Legislativo tem completa independência em relação ao Executivo. Logo, a decisão da presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, de visitar Taiwan, em seu giro pela Ásia, é absolutamente autônoma e, inclusive, divergente da agenda do governo Joe Biden, do mesmo partido.
Ainda que realidade, é muito difícil dissociar a viagem de Pelosi dos interesses americanos. Ela é a mais alta representante dos Estados Unidos a pisar na ilha, considerada uma província rebelde pela China, em 25 anos. O último foi Newt Gingrich (republicano), em 1997.
As razões de Pelosi para ir até o território não são claras. Mas é possível deduzir algumas motivações. A primeira delas é eleitoral.
O Partido Democrata está mal nas pesquisas para as eleições de novembro, as midterms, pleito de meio de mandato quando é renovado parte do Congresso. Em um ambiente polarizado, Taiwan - e sua oposição à China - é uma espécie de cavalo de batalha de um lado e outro do espectro político: os republicanos consideram a China comunista adversária - lembrem de Donald Trump e do "vírus chinês" -, e os democratas, embora menos combativos em relação ao regime de Pequim, não ficam muito atrás. A China - com seu comunismo de mercado, partido único, uma ditadura, com violações aos direitos humanos e sua ameaça à hegemonia dos EUA no sistema internacional - é um tema bipartidário, talvez o único que une democratas e republicanos.
Taiwan, a ilha rebelde para onde migraram os derrotados nacionalistas na revolução de Mao tsé-Tung, em 1949, é um enclave democrático a apenas 160 quilômetros da costa chinesa. Visitar a ilha é reforçar os compromissos com a democracia, a liberdade de imprensa e de expressão - e, de quebra, angariar apoio entre os setores mais à direita do Partido Democrata e, quem sabe, até roubar alguns votos de eleitores indecisos ou que pendem para o lado republicano.
- Abandonar Taiwan é abandonar a democracia e a liberdade - disse o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Bob Menezes.
No aspecto individual, Pelosi sempre adotou uma postura crítica em relação à China em sua extensa carreira. Em 1991, dois anos depois do Massacre da Praça da Paz Celestinal, de 1989, já como deputada pela Califórnia, ela desviou-se da agenda da comitiva oficial em uma viagem à China e visitou o local para homenagear os mortos naquele episódio: "honrar a coragem e o sacrifício dos estudantes, trabalhadores e cidadãos comuns que defenderam a dignidade e os direitos humanos, que todas as pessoas merecem", segundo afirmou à época, lembrado agora em uma mensagem em redes social.
Pelosi também sempre foi muito vocal no Congresso em críticas ao regime comunista. Em 2002, tentou entregar cartas ao vice-líder do Partido Comunista (PCC), Hu Jintao, que depois seria presidente, nas quais criticava a perseguição e prisão de militantes do Tibete. Em 2008, defendeu que o então presidente republicano George W. Bush boicotasse a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim.
A visita foi uma provocação, mas marca a diferença entre Pelosi e Biden, que, agora, iniciou uma operação de contenção de danos - um esforço de mostrar ao mundo e à China em particular que essa não foi uma decisão de Estado. Compreensível, mas difícil de engolir.