Infelizmente, falar em crise na Argentina é chover no molhado. Laboratório de medidas extremas à esquerda e à direita, refém do populismo peronista e de ações neoliberais, prisioneiro dos falsos salvadores do Fundo Monetário Internacional (FMI), o país exibiu ao mundo, no domingo (14), mais uma vez, suas fraturas.
O peronismo sofreu uma tragédia eleitoral e, pela primeira vez desde o fim da últimas ditadura militar (1983), perdeu a maioria no Congresso. Uma tragédia anunciada, diga-se de passagem, já antevista nas PASO, as primárias de julho.
O governo perdeu em La Pampa e Chubut, províncias que eram sua aposta para reverter o mau resultado anterior. Recuperou-se na província de Buenos Aires (que exclui a capital), um de seus principais enclaves, mas sofreu uma dura derrota em Santa Cruz, a sulista região dos glaciares que deu origem a Néstor e Cristina Kirchner.
Aos números: no Senado, presidido por Cristina, o governo perdeu seis dos seus 15 assentos em jogo e passa a ter 35 em vez de 41 cadeiras. Já a oposição, representada pela coalizão Juntos pela Mudança, ganhou cinco lugares e passou a 31 (outros representantes têm seis lugares).
Na Câmara, dos 257 lugares, o governo perdeu dois dos 120 deputados, ficando com 118. A oposição passou de 115 para 116.
Vários fatores explicam a derrota da esquerda.
O primeiro é conjuntural: a pandemia, catástrofe que não tem poupado os maus gestores, de direita ou esquerda, nas eleições. O país contabiliza mais de 116 mil mortos pelo coronavírus. O país viveu, a certa altura, o maior lockdown do mundo - e, se no início havia aprovação popular com relação às medidas de restrição, aos poucos o confinamento foi revoltando os argentinos. As ações afetaram duramente a economia. Os voos comerciais ficaram interrompidos por mais de um ano, crianças não puderam ir à escola por mais de 400 dias. Enquanto vizinhos como Uruguai e Chile viam as vacinas chegarem, a Argentina demorou a receber seus lotes - teve problemas com a Pfizer, com a AstraZeneca e com a Sputnik V. Com relação à campanha, o governo peronista enfrentou dois reveses: um escândalo de vacinação VIP no Ministério da Saúde e uma festa, organizada por Fernández, em meio à pandemia.
O segundo aspecto tem a ver com o primeiro: a crise econômica aprofundada pela pandemia. A Argentina vem de sucessivas crises, mas o coronavírus arruinou ainda mais a vida dos mais pobres. A inflação acumulada entre janeiro e outubro é uma das mais altas do mundo: 41,8% e mais de 40% da população vive na pobreza. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu 9,9% em 2020. O governo tem tentado falar grosso com o FMI, mas, caso não consiga renegociar suas dívidas, terá de entregar US$ 19 bilhões ao fundo em 2022 e a mesma quantia em 2023.
O terceiro aspecto é fruto da peculiar política argentina - de ânimos exaltados, bolas das costas e rivalidades. A própria aliança entre o presidente Alberto Fernández e a ex-presidente Cristina Kirchner, atual vice, foi de ocasião. Serviu para os peronistas tirarem a centro-direita da Casa Rosada, mas era improvável que durasse algum tipo de concordância entre perfis e histórias tão diferentes quanto essa. Cristina, muito mais popular do que Fernández, tem maior penetração nas massas. O kirchnerismo rivaliza hoje, como facção, com o próprio peronismo tradicional. E o vence em determinadas batalhas (Fernández e Cristina praticamente não se falam mais). Não seria exagero prever uma possível renúncia do presidente em favor da vice. Cristina é muito mais forte do que o presidente e, faz parte de seu plano, voltar ao poder. Essa disputa de poder interna, entretanto, não é bom para nenhum dos dois.
A guerra no governo deve implodir o projeto de reeleição da coalizão de centro-esquerda daqui dois anos e provavelmente irá pavimentar o caminho para o retorno da centro-direita ao poder.