Qualquer jornalista que já cobriu uma cúpula de chefes de Estado e governo sabe que as tensões entre países costumam ficar da porta para dentro das salas de reuniões. Divergências, rusgas e batidas na mesa acabam vazando com o passar das horas. Mas, diante das câmeras ,a linguagem preponderante é a diplomática.
Encontros virtuais, em razão da pandemia, dificultam a ação de bastidores e deixam às claras, ao menos em parte, as divergências entre governos. É o que ocorreu nesta terça-feira (17), durante as falas dos líderes na cúpula dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Poucas vezes, houve tamanha desconexão entre os representantes de cada país, com ênfase nas trocas de farpas veladas, embutidas nos discursos dos presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping, da China.
Depois que Xi elogiou a atuação da Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia de covid-19, o brasileiro criticou o órgão e disse que ele precisa ser reformado.
- Desde o início critiquei a politização do vírus, e o pretenso monopólio do conhecimento por parte da OMS, que necessita urgentemente, sim, de reformas. É preciso ressaltar que a crise demonstrou a centralidade das nações para a solução dos problemas que hoje acometem o mundo - disse Bolsonaro.
Em sua fala, Xi pediu apoio ao papel crucial da OMS e ressaltou o desenvolvimento, por parte de empresas chinesas, de uma vacina contra o coronavírus - citando inclusive a parceria com o Brasil. Bolsonaro não respondeu, sequer fez referência à vacina chinesa, que, por brigas políticas com o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), e ideológica (para agradar ao governo Donald Trump), ele já disse que não comprará.
A parceria econômica entre Brasil e China, nosso principal comprador, está ensombrecida pelas divergências geopolíticas e estratégicas da relação entre o gigante asiático e os Estados Unidos. Bolsonaro, nas entrelinhas, se associou a Trump, citando inclusive os mesmos termos que o americano utiliza para criticar o regime comunista: "sistema internacional pautado pela liberdade, pela transparência e segurança" e "defender a democracia e as prerrogativas soberanas dos países".
Nesse jogo de poder, o governo brasileiro pende para o lado indiano, que a Casa Branca escolheu como aliado asiático para fazer frente ao poder chinês. Aliás, Bolsonaro e o nacionalista primeiro-ministro Narendra Modi, são fãs de Trump – o indiano inclusive preparou uma festa com 100 mil pessoas para receber o americano em fevereiro, em Ahmedabad.
Índia e China travam uma batalha pela tecnologia, versão regional da briga entre os EUA e o dragão chinês. Modi quer reduzir a influência do vizinho no mercado digital e, recentemente, proibiu 160 aplicativos chineses, incluindo o TikTok, o WeChat e o buscador Baidu. Como ocorreu no confronto entre Trump e a China em torno dos apps, a justificativa foi segurança nacional. Na verdade, é alinhamento político com os EUA. As duas nações nucleares e vizinhas também têm divergências fronteiriças.
Outra rusga no Brics se mostra na compreensão do sistema internacional - China e África do Sul operam dentro dos organismos multilaterais, enquanto Bolsonaro, Vladimir Putin e Modi são críticos das entidades globais - e por vezes caminham a sua margem. Bolsonaro defendeu reformas no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que inclua Brasil, Índia e África do Sul. O órgão supremo da ONU não representa o atual sistema global, é verdade, mas seria ilusão pensar que a China, membro permanente, aceitaria a Índia. Tampouco os EUA da era Joe Biden, e a França, de Emmanuel Macron aceitariam o Brasil.
Diante de tamanho abismo, é nos números do coronavírus que o Brics se irmana: o PIB dos cinco países totalizou cerca de 25% do PIB mundial (US$ 21 trilhões) no último ano e a participação dos Brics no comércio internacional girou em 20% (US$ 6,7 tri). Em 2020, as economias juntas devem encolher cerca de 30%, sendo que as de Brasil, Índia e África do Sul devem apresentar taxas de crescimento abaixo da média mundial.
Juntos, os cinco países somam 17,5 milhões de infectados pela covid-19, o que representa 31% do total de pessoas no mundo. Três países do bloco estão entre os cinco primeiros do macabro ranking: Índia, Brasil e China. Na tabela dos mortos pelo coronavírus, o Brics contabiliza 355,2 mil, 26% do total do planeta.