Turistas que, da noite para o dia, ficaram sem hospedagem do outro lado do mundo, porque o hotel em que estavam foi obrigado a fechar as portas por ordem de governos. Aeroportos desertos, fora de operação, que abriam apenas para o embarque de brasileiros. Rotas alternativas, sobrevoos de países conflagrados.
Esses foram alguns dos desafios enfrentados pelos diplomatas brasileiros para trazer de volta ao país mais de 17 mil cidadãos que ficaram retidos em cinco continentes devido à pandemia de coronavírus. A maioria é de pessoas cujos voos de volta foram cancelados pelas companhias aéreas em razão da crise.
A maior operação de repatriação de cidadãos da história do Brasil teve a coordenação do embaixador Fábio Mendes Marzano, 55 anos, carioca que está à frente do G-CON, grupo especial de crise para assuntos consulares e migratórios, criado pelo Ministério das Relações Exteriores. Com a experiência de quem trabalhou em postos de Madri, Lima, Caracas, Washington e Paris, Marzano comandou o fretamento de 23 voos até agora, entre eles seis contratados da TAP para trazer mais de 1,4 mil brasileiros de Portugal. Desde o dia 21 de março, o governo investiu R$ 47 milhões nas operações. Cerca de 3,7 mil cidadãos ainda enfrentam problemas para retornar. Há relatos de pessoas que afirmam estar em Malta, Guiné-Bissau, Venezuela e Espanha sem conseguir voos para o Brasil. Segundo o Itamaraty, não há prazo para o término das repatriações.
Em entrevista à coluna, Marzano conta os bastidores da operação, que envolveu mais de 300 diplomatas no Brasil e em postos no Exterior.
Como foi a organização das operações?
Houve pouco tempo. Nosso ministro (chanceler Ernesto Araújo) resolveu estabelecer um grupo de crise, porque começamos a receber informações de consulados e embaixadas que estavam sendo procurados por brasileiros cujos voos haviam sido cancelados, e eles estavam ficando sem opção. O ministro determinou que eu criasse e coordenasse esse grupo, que se estabeleceu rapidamente. Convocamos umas 50 pessoas, hoje temos mais de cem colegas diplomatas trabalhando nas operações. A maioria está trabalhando de casa, mas pedimos à administração os números de celulares e, com isso, conseguimos fazer um esquema 24 horas. Normalmente já temos o plantão consular em Brasília e nos postos, mas, como houve crescimento imenso da demanda de uma hora para outra, foi preciso ter muito mais números de telefone. Colocamos todos esses colegas em uma espécie de plantão intensivo permanente.
E nos consulados e embaixadas, como se organizaram?
Se contarmos os colegas nos postos, dá mais de 300 participando desse grupo de crise. Para podermos receber as demandas (dos brasileiros que precisavam retornar ao país). Divulgamos isso em todas as mídias. Ao mesmo tempo, colocamos um formulário online na nossa plataforma consular para que qualquer brasileiro em dificuldade pudesse se inscrever e explicar sua situação, onde estava, informar seu número de passaporte, telefone, e-mail de contato.
Quais foram as principais dificuldades?
Primeiro havia a dificuldade da demanda em si, atender a tantas pessoas. Foi necessário ter todo esse contingente de colegas diplomatas atendendo. Nem todos estavam treinados para esse tipo de trabalho consular. Tivemos de, muito rapidamente, explicar como atender a um telefone, o que dizer às pessoas, que dados anotar. A segunda dificuldade foi obter os recursos. Por sorte, a Presidência estabeleceu seu próprio centro de operações. Fizemos um ofício, pedindo recursos extraordinários. Estimamos que seriam necessários R$ 50 milhões. Encaminhamos para a Economia e, através desse gabinete da Presidência, o ministério agilizou (a verba). A Casa Civil ajudou também. Em poucos dias, tínhamos já esse crédito extraordinário. Nossas ações ordinárias do orçamento não permitem esse tipo de gasto. Foi preciso que se abrisse essa ação extraordinária. Vencida essa etapa, a terceira foi começar a examinar, junto com os postos, as possíveis rotas (para voos), as situações de maior emergência de brasileiros, os maiores grupos. Tudo isso em paralelo no mundo inteiro. Não dá para priorizar um país em detrimento de outros. Porque pode-se ter um grupo de apenas cinco brasileiros, mas esses estarem em uma situação dramática em algum lugar. Então, você tem de atender rapidamente.
O maior grupo de brasileiros retirados do Exterior veio de Portugal?
O maior contingente até agora foi o de Portugal. Já fizemos cinco voos fretados.
Nunca tínhamos fretado um voo para repatriar brasileiros. Nunca tinha acontecido isso antes na nossa História. Também nunca houve uma pandemia que obrigasse retorno em tão curto prazo de milhares de brasileiros.
E qual foi a operação logística mais complicada?
Acho que foi o voo da Ásia, que envolveu Katmandu (Nepal), Bali e Jacarta (Indonésia). A empresa que fez o menor preço, não sei se não tinha muita experiência em outros lugares, nos deu muito trabalho para conseguir autorizações, sobrevoos, pernoite de tripulação. Teve de mudar de rota, foi marcado um dia, e o voo não conseguiu sair. Tivemos de trazer pessoas em outro avião de Katmandu, coordenar horários para que saíssem da aeronave e já pegassem outra em Bali. Ao mesmo tempo, outros aviões pequenos trouxeram pessoas que estavam em ilhas da Indonésia. Para que, de lá, fossem para Jacarta. Foram várias pequenas operações, que se somaram. Tudo tinha de ser muito coordenado, às vezes com poucas horas para coordenação. Outra grande dificuldade, além de reunir os brasileiros e coordenar, foi o fato de os países estarem praticamente sem operação aeroportuária. A empresa (companhia aérea) que você contrata tem de conseguir tripulação, parte está infectada, em quarentena. Os aeroportos não têm toda aquela cadeia logística de apoio, que envolve muitas pessoas e atividades. Então, tínhamos, por meio da embaixada, fazer gestão com o governo local. Não só pedir autorização para sobrevoo, mas para operar os aeroportos. Em todos esses voos, praticamente os aeroportos estavam desertos. Eram abertos somente para nós, para nosso pessoal da embaixada dar o apoio, fazer o voo e embarcar. Foi muito difícil.
No caso desse voo vocês reuniram os brasileiros de várias regiões em Jacarta e, depois, qual foi a rota?
Saiu de Jacarta e escala em Amsterdã. Conseguimos autorização do governo holandês, e, de lá, a aeronave voou para Guarulhos (São Paulo). Um avião só, lotado. Umas 280 pessoas.
Não foram usados aviões da Força Aérea Brasileira (FAB)?
Não, houve apenas o primeiro caso, que hoje parece tão distante no tempo. De Wuhan. Não foram da aviões da FAB, aeronaves de reserva da Presidência, que resgataram aqueles 30 brasileiros, que, depois, ficaram em quarentena na base aérea de Anápolis. Parecia que tinha terminado tudo. Nem sabíamos que o vírus ia sair da China naquele momento. Mas, logo em seguida, no início de março, houve o caso de brasileiro retido no Irã, no qual tivemos de atuar. Envolveu várias embaixadas por causa de sobrevoos. Logo em seguida, começou toda essa operação. A FAB nos ajudou em Cusco (Peru), onde havia brasileiros retidos. Não se conseguia mais nenhum voo comercial. Daí, a FAB mandou dois Hércules, que conseguiram resgatar todos os brasileiros.
O senhor já havia participado de algo desse tipo?
Havia atuado em algumas operações no passado, na Líbia, mas coordenando todo o esquema, não. Até porque é algo muito inédito para o próprio Itamaraty. Nunca tínhamos fretado um voo para repatriar brasileiros. Nunca tinha acontecido isso antes na nossa História. Também nunca houve uma pandemia que obrigasse retorno em tão curto prazo de milhares de brasileiros.
Em 2006, o Brasil resgatou brasileiros que estavam no Líbano, durante a guerra com Israel, com o uso de aviões da FAB. Esta operação de agora foi mais complicada?
Pelo ineditismo, do tipo de operação, de logística envolvida e negociação. Pela magnitude também. Da noite para o dia, tivemos de acionar ao mesmo tempo toda a rede de postos brasileiros nos cinco continentes. A vantagem é que temos essa rede habituada a atuar em casos consulares. Mas é como se, de repente, em dois meses, tivessem se concentrado todos os casos consulares de anos, ao mesmo tempo. Milhares de pessoas demandando. Não foi só repatriação. Temos dado muito mais e gastado com assistência consular. Porque muitos desses brasileiros foram expulsos de hotéis, às vezes já até tendo pago, mas o estabelecimento foi obrigado a fechar as portas pelo governo local. Principalmente em países onde houve toque de recolher mais rígido. Então, a pessoa foi para rua, e a embaixada teve de providenciar abrigo, algum lugar onde as aceitassem. Pessoas também começaram a ter falta de medicamentos. Não tinham mais recursos, o cartão de crédito já tinha esgotado o limite. Com essa verba extraordinária, fomos municiando as embaixadas e consulados para ajudar, comprando alimentos e tudo o que os brasileiros iam necessitando, até que conseguissem embarcar e retornar.
Conte mais sobre essa situação: brasileiros tiveram de ficar na rua, expulsos de hotéis?
Aconteceu com muita gente. Na Europa, mas também na Ásia. Às vezes, o hotel era obrigado (a fechar). Também aconteceu o contrário: muitos brasileiros que estavam em Cusco não puderam sair do hotel porque foram diagnosticados com o vírus. Nesse hotel, em Cusco, houve até um estrangeiro que morreu. Então, o governo peruano impôs a quarentena, e esse grupo de brasileiros não pode voltar em nosso voo de repatriação, porque não tinha autorização para sequer sair do estabelecimento. Tiveram de cumprir a quarentena. Na semana passada, foram liberados, então conseguimos trazê-los.
E em locais onde não havia representação diplomática brasileira, em vários países da África, como foi?
Quando não há a embaixada, existe um consulado-geral, um cônsul honorário. Temos uma rede muito extensa que utilizamos e que, nesses momentos, é imprescindível. Geralmente, são pessoas locais que têm acesso a autoridades e facilitam o contato. Podem também coordenar os brasileiros e ajudaram muito.
O Itamaraty informou que foram gastos até agora R$ 43 milhões para essas operações. O senhor afirma que a verba recebida era de R$ 50 milhões.
Recebemos uma verba de R$ 50 milhões. Gastamos uns R$ 47 milhões já.
Em momentos de crise, como foi conseguir esse dinheiro? Não está sobrando.
De jeito nenhum, está sendo bem aplicado.
Como o senhor se sente, do ponto de vista pessoal, ao liderar essa operação?
Eu me sinto muito contente de ter essa oportunidade, de não deixar nenhum brasileiro para trás. Ao mesmo tempo, é um aprendizado. Temos aprendido muito nesse contato com autoridades, aqui no Brasil. A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) tem nos ajudado muito, também nos contatos com as homólogas dos outros países, com empresas aéreas. A gente aprende até sobre logística, rotas, aviões. É interessante.