A fortaleza que a ditadura da família Kim conseguiu erigir ao longo das últimas décadas torna a Coreia do Norte um mistério para diplomatas, setores de inteligência, pesquisadores e jornalistas. Por isso, quando o regime comunista anuncia que dispõe de ogivas nucleares, cautela é fundamental. O mesmo vale para quando o governo reivindica a realização de testes com mísseis balísticos ou qualquer informação que vaze de Pyongyang.
O acesso à imprensa internacional é muito controlado. Jornalistas que conseguem viajar ao país o fazem ou como turistas - sob o risco de serem descobertos, presos e mortos - ou se submetem ao controle do governo: cada passo fora do hotel é acompanhado por um funcionário estatal. Só é mostrado o que o regime quer.
Todo esse conhecimento sobre como as autoridades do país mais fechado do mundo operam não foi suficiente para evitar que um boato se espalhasse, em nível global, nas últimas duas semanas, a respeito da saúde do ditador Kim Jong-un. Informantes, normalmente ex-funcionários do regime que desertaram para a Coreia do Sul, divulgaram que o líder comunista teria se submetido a uma cirurgia cardíaca ou que estaria em estado vegetativo - outros chegaram a anunciar sua morte. A ausência de Kim de eventos importantes, como o aniversário do avô e fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung, corroboravam com a tese. Foi a primeira vez que um líder não participou da cerimônia do 15 de abril - ou, pelo menos, que a mídia norte-coreana não divulgou imagens do grande líder no evento.
Ora, a suposta morte de Kim tem implicações fundamentais na geopolítica global. Seu desaparecimento é notícia mundial devido a vários fatores. Quem assume? Qual é o futuro da ditadura comunista? Como fica a questão da segurança regional, na relação com vizinhos como a rival Coreia do Sul e com o Japão? E a segurança internacional? Haveria recuos nos ainda frágeis acordos com os Estados Unidos? Seria o fim de uma guerra em potencial nuclear?
O silêncio do governo alimentou o mistério e as especulações. Kim é obeso, fuma e tem problemas cardíacos. No país onde não há registro oficial de coronavírus estaria o ditador em isolamento para se proteger da doença?
Todo esse mistério se desfez no sábado (3), quando a Coreia do Norte mostrou imagens de Kim em uma cerimônia de inauguração de uma fábrica de fertilizantes.
A evidência de que está vivo obrigou informantes a virem a público admitir o erro e pedir desculpas. Um deles foi Thae Yong Ho, ex-embaixador norte-coreano no Reino Unido e hoje político eleito para o parlamento sul-coreano.
- Sei que foi com a expectativa de eu fazer análises verdadeiras e projeções sobre assuntos da Coreia do Norte que muitos de vocês votaram em mim - disse. - Sinto-me culpado e com grande responsabilidade.
Outro parlamentar, também dissidente, Ji Seong-ho, afirmou que tinha 99% de certeza de que Kim morrera durante a suposta cirurgia.
Kim não morreu.
Os erros dos dissidentes, que alimentaram a mídia global nesses últimos dias, trazem embutidos dois efeitos colaterais e uma lição: primeiro, os boatos retiram a credibilidade sobre as informações que normalmente esses informantes tornam público. Segundo, aumentam o mistério e fortalecem a ditadura norte-coreana. E a lição: cautela, quando se trata de Coreia do Norte, continua sendo fundamental.