O Paulo Sant'Ana, ele tinha uma mania que me encantava. No meio de um raciocínio qualquer, o homem interrompia a própria explanação para elogiar a si mesmo.
– Que frase! – e levava as mãos à cabeça. – Meu Deus, que frase! Que frase!!!
E nem continuava a conversa: saía do fumódromo repetindo "que frase" e nos deixava ali, felizes por vê-lo feliz, então caminhava esbaforido até sua mesa e, no dia seguinte, lá estava a frase no jornal. De fato, era sempre uma grande frase.
Sant'Ana foi um dos maiores frasistas do Estado porque, além do talento indiscutível, era um colecionador de frases dos outros. Amava uma boa frase, guardava na cabeça as melhores frases, portanto sabia bem o que era uma grande frase. Não faz muito, escrevi sobre o dia em que ele entrou no fumódromo avisando que recitaria "o mais belo poema da língua portuguesa".
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Me aprumei na cadeira. Nunca fui muito fã de poesia, mas o poema mais belo de todos, esse eu queria conhecer. Até porque o Sant'Ana sabia de cor mais de cem sonetos, 200 marchinhas de Carnaval e 2 mil letras de música, então sua avaliação era qualificada. Ele soltou a fumaça pelo nariz, depois anunciou o autor e o título:
– De Guilherme de Almeida... – fez uma pausa longa aqui. – O Ciúme.
Bom título, O Ciúme. Acendi um cigarro. O Sant'Ana tossiu e começou:
Minha melhor lembrança é aquele instante no qual
Pela primeira vez me entrou pela retina
Tua silhueta, provocante e fina
Como um punhal
Que começo, que estrofe, que frase! A recordação mais incrível da vida do cara é de quando ele viu a mulher pela primeira vez. Imagine a mulher.
Lembrei dos meus 20 anos: estava eu sentado no ônibus, parado naquela praça em frente à Santa Casa, quando enxerguei uma garota do lado de fora. Linda demais, olhos verdes desse tamanho. E ela me olhou! E ficou me olhando, só que o ônibus começou a andar, começou a partir, e eu continuei olhando para ela, e ela me olhava da calçada, aí o ônibus foi se afastando, então girei o pescoço para trás e seguimos nos olhando por vários segundos, até que ela sumiu de vista e nunca mais a vi.
Passei anos me culpando. Por que não mandei a porcaria do ônibus parar?
Que grande lembrança, veja o que uma frase fez comigo. Devia ser maravilhosa, aquela mulher. E o Sant'Ana prosseguiu, em pé, na minha frente:
Depois, passaste a ser unicamente aquela
Que a gente se habitua a achar apenas bela
E que é quase banal
Ué. O sujeito que achava a mulher tão perfeita agora se acostumou à beleza dela? Que coisa mais triste – e que coisa mais... real. Porque, né, todo mundo já idealizou alguém. Talvez, se eu tivesse parado aquele ônibus, mais tarde ocorresse o mesmo comigo, vai saber. Não sei se Guilherme de Almeida, quando compôs o poema, pensava só nos encantos físicos da moça, mas creio que não, creio que aos poucos a mulher foi se mostrando humana, coitada, tinha que ter seus defeitos.
E agora o Sant'Ana gesticulava e esganiçava o timbre de voz, a mão balançando com o cigarro a um palmo do rosto:
Agora, que te tenho em minhas mãos e sei
Que os teus nervos se enfeixam todos em meus dedos,
Que os teus sentidos são cinco brinquedos
Com que brinquei
Agora, que não mais me és inédita, agora
Que compreendo que tal como te vira outrora
Nunca mais te verei
Agora o que, Sant'Ana?? Agora que ele tem a mulher nas mãos, agora que se refestela e dorme com ela toda noite, agora que a moça é apaixonada por ele, de que diabo esse mal-agradecido vai reclamar? E outra: por que o título do poema é O Ciúme? Se ele já cansou da mulher, o ciúme deveria ter diminuído, não?
Mas o Sant'Ana zanzava pelo fumódromo inteiro, como se fosse o palco do Theatro São Pedro:
Agora que de ti, por muito que me dês,
Já não podes dar a impressão que me deste,
A primeira impressão que me fizeste
Louco, talvez
Tenho ciúme de quem não te conhece ainda
E cedo ou tarde te verá, pálida e linda,
Pela primeira vez.
E acabou. O cara tem ciúme dos homens que, todo dia, sentem aquilo que ele sentiu lá na primeira estrofe. Meu Deus, será que ele vai ficar com a mulher só para ninguém mais tê-la? Será que ele ainda a ama, mesmo que os primeiros encantos e a atração física tenham se dissipado?
O Sant'Ana agora gritava "puta que pariu, puta que pariu!", entusiasmado com os versos que recém saíram de sua boca. Entusiasmado com as frases de outra pessoa. E, de cada pê daqueles puta que pariu, escorriam a excitação e o fascínio que uma grande frase provocava nele.
Li e reli tantas vezes esse poema, que o Sant'Ana precisava saber disso: nunca vou decorar cem poemas como tu, meu amigo, mas pelo menos unzinho, eu, que nunca gostei de poesia – mas também amo uma boa frase –, já sei de cor.
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