Já ouvi trocentas vezes a frase “passou um filme na minha cabeça” e nunca entendi bem porque algumas pessoas apelam para esse lugar-comum quando não conseguem expressar suas emoções com objetividade. Um filme? Pode ser um filme de terror. Pode ser uma comédia. Pode ser uma chanchada, uma ficção científica, um enredo apocalíptico. Sempre fico curioso para saber qual seria o filme imaginado pelo declarante, se é que realmente passa alguma coisa na sua cabeça quando lhe faltam as palavras adequadas para dizer o que está sentindo.
Nestes momentos, sinto falta de um explicador.
Os explicadores existiram nos primórdios do cinema mudo, especialmente no Japão, onde alguns se tornaram profissionais especializados e apreciados. Eram pessoas contratadas para narrar o filme silencioso para a plateia, até para evitar que alguns expectadores mais assustados saíssem em disparada quando uma locomotiva avançava na tela. Pois certos narradores se aperfeiçoaram tanto nesta arte de interpretar e contar o filme que se tornaram idolatrados pelo público. Muitas pessoas iam ao cinema mais para ver o show do “benshi” (o nome japonês do explicador) do que propriamente para assistir ao filme.
Foi o caso do irmão mais velho do célebre cineasta Akira Kurosawa, chamado Heigo. O rapaz ficou tão famoso como explicador que, quando sua profissão desapareceu com a chegada dos filmes sonoros, entrou em depressão e optou por deixar a vida para entrar na história do cinema. Diz-se que foi para homenageá-lo que Kurosawa se tornou diretor.
Ultimamente também sinto falta de explicadores competentes para entender o que está acontecendo com a humanidade na vida real. Encurralados por avanços tecnológicos desconcertantes e ameaçados por desarranjos climáticos recorrentes, nós, os terráqueos supostamente inteligentes, demos agora para escolher governantes negacionistas e destrambelhados. Por conta disso, começamos a retroceder em questões civilizatórias que pareciam bem resolvidas, como democracia, direitos humanos, liberdade de expressão, tolerância, justiça social, senso de comunidade global. Do jeito que vai, vamos acabar voltando ao cinema mudo.
E a locomotiva da insensatez já avança pela tela.