Sou humano e nada do que é humano me é estranho. Aprecio muito esta citação do poeta romano Terêncio, que costumo usar como uma espécie de atestado de vacina contra as surpresas da vida. Mas esse negócio de vender a íris dos olhos em troca de uma identidade de ser humano, só para provar que não sou um robô, me parece mais do que estranho: é surreal, ilógico, antinatural e mais algum adjetivo de absurdidade que me falta agora no meu escasso vocabulário de imprecações leves.
Eu vi, com essas cansadas íris que tão cedo a terra não haverá de comer, uma mulher dizendo para a amiga na televisão:
— Acabei de vender o meu olho!
Claro que logo pensei em transplante de córnea ou algo do gênero, mesmo sabendo que a venda de órgãos é considerada crime em nosso país. Mas não era nada disso: a moça estava apenas contando que se submetera a um processo de escaneamento dos próprios olhos em troca de uma recompensa em criptomoedas, o dinheiro digital que pode ser convertido em dinheiro real. Por seu ato voluntário, também recebeu um certificado de humanidade da empresa multinacional que cataloga olhares e dados pessoais de homens e mulheres ao redor do mundo.
O World Network é um projeto da empresa Tools for Humanity e seu principal objetivo — segundo seus idealizadores — é ajudar a diferenciar humanos de robôs e inteligências artificiais. Parece até uma causa humanitária em tempos de vídeos manipulados por vigaristas digitais, com políticos e celebridades dizendo o que nunca disseram. Mas talvez não seja só isso. Há tantas dúvidas sobre o real interesse desses captores de íris que o negócio já está sendo proibido por países preocupados em proteger os dados pessoais dos seus cidadãos.
Podem me acusar de tecnofobia, mas já vou avisando: não vendo nem alugo meus olhos por criptodinheiro algum. Se algum dia precisar provar que sou humano de outra maneira que não seja decifrando aquelas letrinhas distorcidas dos testes de autentificação digital, alegarei que tive medo de escanear minhas íris — sentimento que os robôs ainda não conseguiram incorporar de forma convincente. Ainda!