O episódio da censura na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que mobilizou o país na semana passada e exigiu decisão do Supremo Tribunal Federal, me fez lembrar aquela cena final do filme Cinema Paradiso. Eram outros beijos, dirão os mais conservadores, mas é inegável que ambos despertaram o espírito autoritário de quem se julga no direito (ou no dever) de decidir o que os outros devem ver e ouvir. Ainda que o padre siciliano do filme e o bispo-prefeito do Rio soubessem recitar 200 versículos bíblicos de cor, como recomenda a nova ordem, não lhes compete, numa democracia, cercear a liberdade de expressão nem tutelar o acesso à informação das demais pessoas.
Se me permitem o spoiler retroativo para sustentar a minha tese, lembro que o belo filme de Giuseppe Tornatore conta a história da amizade entre o menino Toto e o adulto Alfredo, operador do cineminha da cidade. Toto era coroinha da igreja local e auxiliava Alfredo nas projeções, todas elas submetidas à prévia aprovação (e aos cortes) do pároco. Trinta anos depois de ter saído de sua terra natal, tornando-se um cineasta bem-sucedido graças à paixão despertada na infância, Toto retorna para a homenagem póstuma ao amigo e recebe da sua viúva um rolo de cenas com a edição dos beijos de amor censurados pelo religioso.
Protagonista e público se emocionam juntos numa das mais belas sequências da história do cinema. São cerca de 40 beijos retirados de outros filmes, todos devidamente identificados pelos fãs da bela obra de Tornatore. Até um daqueles beijinhos cômicos de Charles Chaplin acabou sendo podado pela tesoura do padre.
Pois agora a realidade imita a ficção. Em tempos de internet ao alcance de todos (crianças, inclusive) e de revolução dos costumes, a hipocrisia dos censores contemporâneos só não é mais assombrosa do que sua inépcia. Será que não percebem o efeito multiplicador da proibição? Censuradas, obras que seriam vistas por um público restrito acabam ganhando projeção e se transformam em verdadeiros best-sellers. Aconteceu com a HQ da Bienal e com a exposição de charges da Câmara de Vereadores de Porto Alegre.
Os autores devem estar mandando beijos irônicos para as autoridades repressoras.