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Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Ao longo de seus 500 anos o Brasil colecionou muitas histórias: trágicas, cômicas, curiosas. Aqui estão três delas. Separadas por longos períodos de tempo, refletem um pouco daquilo que poderíamos chamar de “a condição brasileira”.
1. O homem que não quis ser rei
O título é de uma história de Rudyard Kipling, mas bem poderia ser aplicado a um insólito episódio de nossa história.
O ano é 1641. O Brasil é ainda colônia de Portugal que, em dezembro de 1640, conseguira libertar-se do domínio espanhol. Cerca de um mês depois a notícia chega à cidade de Piratininga. A futura capital paulista não teria então mais do que mil habitantes, divididos entre portugueses e brasileiros.
Os portugueses vibraram com a boa nova e quiseram de imediato fazer um público juramento de lealdade ao novo rei luso, dom João IV. Aos brasileiros, outra ideia ocorreu: já que Portugal se libertara da Espanha, por que não podia o Brasil se libertar de Portugal? De imediato organizou-se uma manifestação pública, com participantes entusiasmados clamando pela independência.
Só havia um problema: Portugal tinha o seu rei, o Brasil não. Mas logo um nome brotou de várias gargantas, o de Amador Bueno da Ribeira. Rico, inteligente, digno, tinha todo o perfil de um rei. Foram, pois todos à casa de Amador Bueno para comunicar-lhe que ele agora era o rei do Brasil.
Só que Amador Bueno recusou o convite. Claro: não tinha palácio, não tinha governo, não tinha tropas para enfrentar Portugal. Ser rei era mais que uma fria, era uma gelada. A multidão, no entanto, não queria papo: ou aceita ou morre, era o que gritavam. Sem outra alternativa, Amador Bueno fugiu pela porta dos fundos. Fugiu para não ser rei. E foi pedir asilo no mosteiro de São Bento.
Hoje, quando os políticos agarram-se ao poder com unhas e dentes, é bom lembrar: houve, um dia, um brasileiro que não quis ser rei.
2. “Papai, o sr. me vendeu”
O ano é 1840. A cidade, Salvador da Bahia. É lá que vive um menino chamado Luís Gama. É um menino feliz, o filho de um casamento pouco habitual: o pai é um fidalgo português, a mãe, uma negra, dona de quitanda.
A mãe trabalha. O pai joga. Joga muito. Perde fortunas. Isso não impede que seja amável e carinhoso com o filho. Cuida dele, leva-o a passear.
Um dia – 10 de novembro de 1840 –, o homem chega em casa e anuncia que vai levar o pequeno Luís para conhecer um navio que está ancorado no porto. O menino, entusiasmado, aceita. De bote vão até o Saraiva. O pequeno Luís Gama corre de um lado para outro, deslumbrado. De repente, pára. Onde está o pai? Procura-o, não o encontra em lugar algum. Corre até a amurada. Lá está o homem, afastando-se no bote que o trouxera, e garantindo que volta já. De imediato o garoto dá-se conta:
– Papai, o sr. me vendeu!
Verdade: para ter dinheiro, e continuar jogando, o pai o vendera como escravo. Luís Gama é levado para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. O alferes Antonio Cardoso, que o comprara, não consegue revendê-lo: Luís Gama é criança demais. Fica, portanto, com o menino. Trabalha na casa – e estuda, com um jovem que é hóspede do alferes.
Mais tarde, torna-se soldado, e depois escrivão de polícia. E estuda, estuda sem parar. Torna-se poeta, jornalista, advogado, líder abolicionista. Uma história de sucesso. Uma história de tristeza infinita: Luís Gama, como muitos outros brasileirinhos, foi separado de sua mãe para sempre. Em nome dela, e em nome de muitos outros explorados, lutou até o fim.
3. Os ratos do Amaral
Rio de Janeiro, 1903. Oswaldo Cruz é nomeado, pelo presidente Rodrigues Alves, diretor de Saúde Pública, cargo equivalente hoje ao de ministro da Saúde. Ao assumir, recebe uma decisiva missão: sanear o Rio de Janeiro. A então Capital Federal era assolada por várias prestilências: febre amarela, peste bubônica, varíola. Os navios estrangeiros recusavam-se a ali aportar. O café, principal fonte de divisas para o país, não podia ser exportado. A dívida externa – já naquela época! – crescia sem parar. Sanear o Rio é salvar o Brasil.
Competente – ele acaba de voltar de um estágio no Instituto Pasteur, em Paris –, dedicado, resoluto, Oswaldo Cruz atira-se à tarefa com férrea determinação. Atacará doença por doença, por meio de campanhas sanitárias. A primeira, tendo como alvo a febre amarela, baseia se no combate ao mosquito que, conforme demonstrado por Carlos Finlay em Cuba, é o transmissor da doença. Uma ideia que muitos, médicos inclusive, ridicularizam. Mas Oswaldo vai em frente e consegue diminuir substancialmente o número de casos.
O alvo seguinte é a peste bubônica, transmitida por uma pulga do rato. Trata-se, pois, de exterminar os roedores. Como foi feito em outros países, Oswaldo oferece uma quantia, 300 réis, para cada rato capturado. De novo, zombarias – e um bom negócio. Um homem chamado Amaral monta um esquema para vender ratos – muitos dos quais criados para este fim – ao governo. Breve, ele é credor de quase 10 contos de réis (o equivalente a uns 30 mil ratos). A quantia desperta suspeitas, Amaral é preso e confessa: sim, vendia ratos ao governo, mas ratos criados no Rio – ele não fazia como outros, que traziam ratos de Estados vizinhos ou até de navios estrangeiros. Como dizia uma popular composição da época, dedicada aos ratos:
“Vou provar-te como sou mau. / Meu tostão é garantido / não te solto nem a pau”.
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
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- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
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- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
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-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
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- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
-08/06/2010: "Crimes e erros"
-13/06/2004: "O maratonista cego"
-09/11/2010:" Escritores e preconceito"
-10/10/2004: "Quando eu tinha a tua idade"
-21/11/2010: "O primeiro hippie"
-02/09/1995: " Há algum médico a bordo?"
- 13/05/2008: "Israel, 60 anos"
-03/10/2004: "O mundo visto do leito"
- 24/12/1995: "O amigo secreto"
- 25/07/1998: " Histórias de médico em formação"
- 15/04/2006 : "Em busca da tolerância"
-29/08/2008: "O segundo fôlego"
- 08/12/2007: "O menino triste. Triste ou deprimido?"
- 04/02/2006: "Controvérsia viva"
- 08/08/2004: "Os paradoxos da paternidade"