Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Foi notícia na semana passada: numa escola de São Paulo, uma professora colocou de castigo um aluninho (sete anos) atrás da porta. O episódio provavelmente passaria despercebido, não fosse por um detalhe: a professora “esqueceu” o aluno, que só voltou para casa quando a mãe, estranhando a ausência, foi buscá-lo na escola. Aliás, a mãe também costumava castigar o menino, que só era liberado quando ela mandava. Ou seja, o garoto estava acostumado a suportar o castigo com resignação.
Ouvidos a respeito, educadores manifestaram a sua indignação, mas castigo é uma prática mais disseminada, e mais antiga, do que se imagina: poupa a vara e estragarás a criança, diz a Bíblia. Na Inglaterra vitoriana, açoitar os jovens colegiais era uma coisa comum. Como comum foi a palmatória no Brasil. E também ajoelhar sobre grãos de milho. Ou ficar atrás da porta. A porta, nesses casos, extrapola a sua função de separar aposentos ou de isolar a casa da rua. A porta torna-se o limite entre o certo e o errado, entre o tolerável e o inadmissível.
Pergunta: e funciona? Funciona. Mas não para tornar o jovem melhor, ao contrário. A repressão violenta tem consequências assustadoras. Londres sob a rainha Vitória foi cenário de crimes que impressionavam pela violência e pela perversidade: era a época de Jack, o Estripador, para ficar num único e impressionante exemplo.
O castigo não pode funcionar como instrumento educativo porque ele não tem nenhuma lógica. Colocar a criança atrás da porta é um jeito de isolá-la do mundo; cria-se um pequeno compartimento em que ela não vê ninguém, não fala com ninguém. Como se fosse uma solitária. Uma vez participei numa visita ao famoso presídio da ilha de Alcatraz, agora desativado. Quando chegamos à solitária, o guia perguntou se alguém queria ficar ali dentro por alguns minutos. Apresentei-me como voluntário e devo dizer que raramente passei por experiência tão penosa. O princípio da solitária é a privação sensorial: como a cela é escura, a gente não vê nada. Também não se ouve nada e, como o frio nos entorpece, até o tato perdemos. Agora: que conclusão tira o preso dessa situação, a não ser que deve tratar de fugir o mais rápido possível? Desde quando solitária – ou, a propósito, a prisão em geral – colabora para a recuperação moral de alguém?
Há uma diferença importante entre castigo e punição. Quem comete uma falta deve ser punido, para que possa assim compreender o nexo entre sua conduta e a reação dos outros, pais ou professores. A criança que agride os familiares durante uma refeição deve ser retirada da mesa: aprenderá assim que num espaço coletivo temos de respeitar os direitos dos outros, que há limites para aquilo que podemos fazer. Entre parênteses, a punição, sendo uma medida pedagógica, deve ser explicada, para que a criança não veja nela um ato arbitrário.
Portas foram feitas para serem fechadas ou, preferencialmente, abertas. O espaço atrás da porta é um espaço provisório, virtual. Não é lugar para colocar criança alguma. Não é lugar para o “esqueceram de mim”. Esta é uma lição que não podemos, que não devemos esquecer.
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