
Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
"A vida humana está no sangue", diz o Levítico, com isso criando uma imagem que se perpetuaria na cultura ocidental, e que reapareceria sob muitas variantes. Na liturgia cristã, o vinho da missa simboliza o sangue de Cristo, derramado por Jesus para salvar a humanidade e garantir-lhe a vida eterna. Da mesma maneira, "a alma humana", garante um texto do século treze, Roman de Sidrac, "está em todas as partes do corpo onde existem sangue".
É claro que tal simbolismo nasce da observação. Se a hemorragia pode ser fatal para seres humanos e animais, então é óbvio que o sangue desempenha um papel fundamental no organismo, papel assinalado por sua cor vermelha, que o diferencia dramaticamente de todos os outros líquidos orgânicos. Curiosamente, porém, considerava-se que havia dois problemas com o sangue, em termos de quantidade: a falta, anemia, ou, mais frequentemente, o excesso. Os médicos antigos descreviam um estado chamado pletora, em que a pessoa, por assim dizer, se afogava no excesso de sangue. O tratamento para isso - sempre dramático - era a sangria. Um procedimento que começou na antiguidade e que teria longa vida: estudante de Medicina, ainda vi os meus professores tratarem pacientes com edema agudo de pulmão cortando-lhes uma veia no braço. E recordo um deles dizendo: "Não basta que o sangue corra, é preciso que esguiche". A verdade, porém, é que, transitoriamente ao menos, a sangria aliviava a sobrecarga circulatória. Um papel que depois os medicamentos vieram a desempenhar com muito maior eficiência.
Na antiguidade, contudo, a sangria não era feita por médicos. De novo, havia aí um preconceito: o procedimento tinha algo de impuro. Ficava, portanto, reservado a uma profissão auxiliar, a dos barbeiros. Havia uma série de regras para o procedimento. Por exemplo, não se podia fazer sangria perto de objetos vermelhos, por causa da atração entre o "semelhante e o semelhante", que poderia aumentar a hemorragia. O sangue tinha de ser jogado fora - a ideia de banco de sangue estava completamente fora de cogitação. Havia dias, chamados "dias egipcíacos", em que fazer sangria podia ser perigoso.
De qualquer modo, havia entusiasmo generalizado quanto à sangria. "É como extrair água de um poço", garantia o italiano Botal, médico de vários reis. "Quanto mais se tira, mais pura ela vem." Não havia acordo sobre a quantidade de sangue a ser extraída, de modo que os critérios variavam: um autor, por exemplo, dizia que se poderia tirar 30 libras de sangue de um alemão, mas só 20 libras de um francês. Fazia-se sangria para tudo: para varíola, para pleurisia, para tuberculose. Havia quem sangrasse pacientes até 20 vezes em 48 horas, e há suspeita de que pessoas famosas, como Descartes e Mozart, possam ter morrido assim. Dizia-se que Broussais, famoso médico francês, derramara mais sangue do que Napoleão. Lá pelas tantas, entraram em cena as sanguessugas: esses vermes aquáticos, capazes de secretar uma substância anticoagulante, eram colocados sobre uma escarificação praticada no paciente. A mesma finalidade tinham as ventosas.
Tudo isso é coisa do passado. A microscopia mostrou que o sangue é formado de plasma e de células que desempenham funções vitais no organismo. Repor o sangue passou a ser uma preocupação fundamental. Que está, convenhamos, mais próxima ao Antigo e ao Novo Testamento do que a sangria.
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"
-01/07/2006: "Uma reabilitação histórica"
-08/02/2004: "Dilemas caninos"
-01/10/2000: "Retrato do artista quando jovem"
-08/03/2003: "A mulher e sua saúde"
-03/04/2007: "A nossa frágil condição humana"
-22/02/2004: "Liberou geral"
-23/06/2003: "Atualidade de Orwell"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-13/11/2004: "Brigando contra a vacina"
-20/04/2008: "Uma lição de vida"
-09/05/2004: "Por onde andam as mães dos órfãos?"
-24/08/2003: "A história e a vida"
-09/09/2004: "Biologia e preconceito: o caso da síndroma de Down"
-09/01/2009: " A voz do profeta, as vozes da paz''
-12/06/2006: "Lembrando Clarice"
-08/11/2008: "Queixas de médicos"
-08/06/2010: "Crimes e erros"
-13/06/2004: "O maratonista cego"
-09/11/2010:" Escritores e preconceito"
-10/10/2004: "Quando eu tinha a tua idade"
-21/11/2010: "O primeiro hippie"
-02/09/1995: " Há algum médico a bordo?"
- 13/05/2008: "Israel, 60 anos"
-03/10/2004: "O mundo visto do leito"
- 24/12/1995: "O amigo secreto"
- 25/07/1998: " Histórias de médico em formação"
- 15/04/2006 : "Em busca da tolerância"
-29/08/2008: "O segundo fôlego"
- 08/12/2007: "O menino triste. Triste ou deprimido?"
- 04/02/2006: "Controvérsia viva"
- 08/08/2004: "Os paradoxos da paternidade"
- 23/04/2000: "Três histórias da História do Brasil"