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Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
O Oriente Médio sempre dá manchetes, mas nas últimas semanas elas surgiram com frequência e com impacto maiores que os habituais. Em primeiro lugar, tivemos as absurdas declarações do presidente do Irã, negando o Holocausto e dizendo que Israel deveria ser “varrido do mapa”. Depois, foram as eleições palestinas, que proporcionaram inesperada vitória ao Hamas, mistura de partido político movimento terrorista. Não por coincidência, o conflito do Oriente Médio é o tema de três filmes que estão estreando no Brasil e provocando, como em outros países, uma acesa e importante polêmica.
O primeiro deles é, naturalmente, Munique, de Steven Spielberg, o campeão da controvérsia. Para dar um exemplo: no fim de semana passado, dois grandes jornais publicaram resenhas sobre a obra. A Folha de S.Paulo rotulou-a como medíocre e até cansativa; já em O Estado de S.Paulo, Luiz Carlos Merten fala de um “filme Espetacularmente dirigido”, “emocionante e doloroso”, um trabalho cinematográfico raro pela complexidade. Essa diversidade de opiniões remete a uma ampla discussão sobre valores políticos e morais.
Estamos falando de um sombrio e bem conhecido episódio. Nas Olimpíadas de 1972, em Munique, terroristas ligados ao grupo Setembro Negro invadiram o alojamento dos atletas e sequestraram vários deles, levando-os para o aeroporto. Lá houve um combate com as forças de segurança alemãs, durante o qual alguns sequestradores foram mortos e outros mataram os reféns. Numa reunião do gabinete israelense, então liderado por Golda Meir, é decidida uma ação retaliatória, que ficará a cargo de um grupo liderado pelo ex-guarda-costas de Golda Avner Kaufman (Eric Bana). Acompanharemos, por mais de duas horas (o filme é de longa-metragem) a caçada que se desdobrará por várias cidades e vários países, durante a qual vários terroristas serão liquidados.
Assim resumindo, parece que estamos falando de um filme de ação, dos muitos produzidos pelo cinema americano de acordo com a clássica fórmula de mocinhos contra bandidos. Mas não é o que o Spielberg faz. Tendo como roteirista um dramaturgo famoso, Tony Kushner (autor de Angels in America, peça teatral sobre a Aids, de enorme sucesso na Broadway), ele optou por fugir da simplificação maniqueísta, expondo os conflitos pelos quais passam os personagens, incluindo os palestinos. Avner, que é um homem jovem e que durante os acontecimentos se torna pai, é particularmente torturado pela dúvida, chegando ao nível da paranoia.
Spielberg é judeu e dirige uma ONG destinada a preservar a memória do Holocausto. Ironicamente, contudo, ele foi duramente criticado pelos dois filmes que fez sobre temas judaicos. A lista de Schindler, para alguns, banaliza o Holocausto. Munique seria baseado em um livro (A hora da vingança, de Goerge Jonas) não muito fiel à realidade. Essa última acusação é liderada pelo jornalista Aaron Klein, que trabalhou na inteligência militar de Israel e que recentemente publicou – sobre o mesmo assunto – Contra- ataque. Klein diz que a caçada aos terroristas não foi só motivada pelo desejo de vingança como também pelo objetivo de impedir novos ataques terroristas. Garante ainda que não houve remorsos entre os agentes israelenses engajados na operação.
Não há dúvida de que o filme adapta livremente os acontecimentos; afinal, é uma obra de ficção, não um documentário. O que importa é a mensagem que transmite, reconhecida como positiva por, entre outros, os familiares dos atletas assassinados. Isso não livra Munique de uma segunda acusação, sintetizada na expressão “equivalência moral”: os terroristas teriam seus motivos (ou seus pretextos) para agirem como o fizeram. O que fica muito evidente num diálogo entre Avner e um dos terroristas. Ignorando a identidade de seu interlocutor este último apresenta as razões pelas quais os palestinos lutam e pelas quais recorrem ao terror. Essa busca de um equilíbrio não foi muito bem recebida. Respondendo a seus críticos, disse Spielberg: “As pessoas que atacam o filme baseadas em ‘equivalência moral’ são as mesmas que acreditam na guerra como única solução. Creio que cada ato de terrorismo deve ter uma resposta forte, mas precisamos também prestar atenção às causas do terror.” Acrescenta Kushner: “No filme, o conflito entre palestinos e israelenses não é apresentado como questão religiosa, de sanidade versus insanidade, de bem contra o mal, de civilização versus barbárie, de cultura judaico-cristã versus cultura muçulmana, mas sim como uma luta por território, por lar”. Nesta luta, prossegue, “pessoas fazem coisas terríveis em nome de uma causa que acreditam ser justa ou de uma causa que é de fato justa”.
O segundo filme é Free Zone, de Amos Gitai, um israelense que serviu como soldado (e quase morreu) na Guerra do Yom Kippur, em 1973. Desde então, tornou-se cineasta, procurando entender a realidade israelense através da câmera. Em Kadosh, por exemplo, ele examina o fanatismo religioso. Free Zone reúne três mulheres, uma americana, uma israelense e uma palestina que se encontram na “zona livre” do título, um lugar da Jordânia onde são comercializados carros usados. O motivo da viagem é negócios, mas os diálogos entre as três são profundamente reveladores do clima emocional no Oriente Médio. De novo, trata-se aqui de entender o “outro”, de ver, como diz Gitai, o oceano na gota d’água.
O terceiro filme é Paradise now, de Hany Abu-Assad, que acompanha os dois últimos dias de dois palestinos recrutados na Cisjordânia para se tornarem homens-bomba em Tel Aviv.O principal objetivo do diretor é esclarecer os motivos que levam jovens a se transformar em instrumentos do terror. No clima de pobreza e desesperança, o fanatismo encontra terreno fértil, mas o diretor deixa bem claro que isso não é uma unanimidade: a geração mais velha sabe muito vem que a violência só serve para perpetuar o ciclo de retaliações, levando à questão: até quando, até onde?
Conclusão: ao menos no cinema, as perguntas estão substituindo as proclamações e as ameaças. O que não deixa de ser um bom sinal. Resta saber como isso se traduzirá na prática, e neste sentido o Hamas está com a palavra. O que escolherão seus líderes, a negociação ou a violência? Quem governa não pode só fazer discursos belicosos, ou, pior, recorrer ao terror. Quem governa tem de prover à população saúde, segurança, emprego, educação. E mudar não é impossível, como mostrou a trajetória de Sharon. Em suma, dá para aprender muita coisa. No cinema e na vida real.
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