Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.

Em A Saúde dos Enfermos, o grande escritor argentino Julio Cortázar conta uma história patética. Trata-se de um rapaz que deixa a Argentina para morar no Exterior (em Recife, especificamente) e morre. Além da dor representada por essa perda, a família vê-se diante de um sombrio problema: como dar a notícia à mãe do falecido, ela própria portadora de uma séria doença cardíaca? Decidem, então, manter a ilusão de que o jovem continua vivo. Para isso forjam cartas dele. O truque funciona à perfeição - as cartas são tão convincentes que até a família acredita nelas. De repente, morre a mãe. E Cortázar encerra o conto com aquelas pessoas colocando-se, involuntariamente, uma outra questão: como dar ao familiar de Recife a notícia da morte da mãe?
O que temos aí é uma mentira piedosa, tão piedosa que exigiu o comprometimento de várias pessoas. As quais, por sua vez, comprometeram-se tanto com a piedosa mentira que chegaram a acreditar nela.
O drama vivido pela fictícia família é aquele que muitos médicos enfrentam. Como dar uma má notícia? Como dizer a uma pessoa que ela está com câncer terminal?
No passado, o princípio básico era poupar o doente, mesmo que à custa de uma encenação. Não se tratava apenas de mudar o diagnóstico. Era preciso, por exemplo, evitar consultas a certos especialistas - no caso, os oncologistas. Estes eram informados do caso, podiam até opinar, mas, se eram conhecidos do paciente, evitava-se o contato.
Essa situação começou a mudar a partir dos Estados Unidos. Lá, pacientes processavam médicos exatamente por não terem sido informados de um diagnóstico sério e de um prognóstico reservado. Por causa disso, alegavam, não tinham posto suas coisas em ordem - em termos de testamento, de providências várias. E os médicos passaram, então, a uma seca objetividade. Há casos em que o paciente é informado pelo telefone: "Recebi o laudo de sua biópsia. É câncer".
Claramente, o pêndulo oscilou na direção oposta. E será preciso conseguir uma nova posição de equilíbrio. Uma posição em que a verdade possa ser revelada, mas num clima de mútua compreensão. O que a medicina, inclusive, agora permite: câncer há muito tempo deixou de ser uma condenação para ser o diagnóstico de uma situação que, grave às vezes, sempre permite providências e não raro uma cura definitiva. Nem mentira piedosa nem o brusco anúncio.
Pode acontecer que o médico beneficie o paciente mentindo a ele, e que, ao mesmo tempo, tenha prazer com essa mentira? Esses tempos ouvi uma história sobre uma velha senhora que estava hospitalizada. Os médicos colocaram nela uma sonda nasogástrica, que a paciente arrancava constantemente, criando problemas para a equipe. Um dia, a anciã viu o residente preparando, pela enésima vez, a sonda. Para isso, passava no tubo um lubrificante. Curiosa, ela perguntou o que era aquilo. O residente teve uma inspiração:
- É cola-tudo. Se a senhora arrancar esta sonda, vai ficar toda machucada por dentro.
Em silêncio, a velhinha deixou que a sonda fosse colocada e não mais a retirou. Com o que tornou-se uma séria candidata a personagem de um Cortázar.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"
- 23/03/1997: " O analista do Brasil"
- 06/02/1999: "Em busca do esqueleto"
- 09/05/1998: "As múltiplas linguagens da literatura judaica"
- 14/05/2000: "Olha só, mamãe, sem as mãos"
- 09/04/1997: "Um grande escritor e um grande homem"
- 30/10/1999: "Medicina e arte: a visão satírica"
- 01/12/1998: "Um patriarca no deserto"
- 04/06/2000: "A porta que falava"
- 17/08/1997: "Menos mágicos, mais realistas"
-29/04/2000: "Medicina e Racismo"
-01/12/2005: "O mercador de Veneza"
-11/06/2000: "O espaço do amor"
-08/08/1998: "O tríplice Cyro Martins"