
Um artigo de opinião no Financial Times, a principal publicação econômica europeia, afirma: "Os Estados Unidos, sob Donald Trump, são um mercado emergente" (leia aqui). Quem faz a afirmação é Rana Foroohar, americana que atua como editora associada do jornal britânico e também analista de economia da CNN.
Um texto editorial em The Wall Street Journal, referência americana em finanças, repete a formulação em forma de pergunta: "Existe um novo prêmio de risco para os EUA?" (confira aqui). Como as nações obrigadas a pagar "prêmio de risco" para vender seus papéis são as emergentes, é outra versão da tese de Forrohar. A coluna sempre gosta de lembrar que o WSJ é do grupo de Rupert Murdoch, aliado de Trump. Atualmente, é uma observação necessária.
As avaliações são baseadas nas dificuldades observadas na negociação de títulos do Tesouro americano, que até há poucos dias representavam o porto seguro dos portos seguros. Os papéis de longo prazo (T-Bonds de 30 anos) decolaram, indicando não só baixa procura como necessidade de remunerar melhor para captar – como fazem países como Brasil e México.
Taxas altas nos títulos do Tesouro significam que o governo americano está precisando pagar mais para que o investidor aceite comprar, o que é um sinal de desconfiança em relação à gigantesca dívida americana: US$ 36,7 trilhões, ou 122,6% do PIB. Ao precisar desembolsar mais para rolar o endividamento, ocorre com os EUA o mesmo que afeta Brasil (e a grande maioria dos emergentes): o débito também aumenta.
No foco das avaliações, também aparece o dólar. Para brasileiros, é mais desafiador ver a moeda americana sob questionamento porque, aqui, um dos efeitos do vaivém tarifário de Trump foi elevar a cotação. Ante moedas fortes, como euro, iene e franco suíço, porém, as "verdinhas" se enfraqueceram durante o vaivém de alíquotas e de produtos taxados. Nesta segunda-feira, porém, a cotação voltou a desinflar discretamente (-0,34%), para R$ 5,851 – ainda acima do patamar em que estava antes do tarifaço.
Não faltou quem tivesse visto intenção nesse efeito: seria desejo de Trump desvalorizar o dólar, mecanismo usado por emergentes para tornar suas exportações mais baratas. Se o objetivo era esse, o maior risco é de que seja atingido.
Sem a ancoragem do "porto seguro dos portos seguros", o dólar se deprecia ante moedas fortes e o mercado perde a referência de preços – de ações a derivativos, passando por títulos. O risco embutido é ainda maior do que a já tremenda ameaça de desaceleração global provocada por um tarifaço sem bases fáticas: uma impensável fuga de capitais dos EUA.
No meio desse debate, existe a especulação de que a segunda maior detentora de Treasuries no mundo – a China (o primeiro é o Japão) – esteja reforçando a desvalorização do títulos que costumavam ser sinônimo de segurança.
— A China pode estar vendendo como retaliação às tarifas — disse à Bloomberg Kenichiro Kitamura, gerente-geral do departamento de planejamento e pesquisa de investimentos da Meiji Yasuda, de Tóquio.
Não é impossível, mas uma eventual venda maciça de Treasuries teria um custo alto para a China: a perda de reservas.
Os erros em cascata no tarifaço
1. De diagnóstico: para Trump, os déficits comerciais dos EUA estão na raiz de todos os problemas. A coluna já detalhou que, em muitos casos, esses resultados são provocados por... companhias americanas. A Apple tem produção espalhada por todo o globo e assina seus dispositivos com "Designed by Apple in California", assim como montadoras de carros e até de tênis, como a Nike e suas 71 unidades só no Vietnã.
2. De objetivo: em teoria, a meta é forçar empresas americanas – como Apple e Nike – a levar essa produção descentralizada de volta aos EUA para fugir das tarifas punitivas. Esse processo leva anos: é preciso construir unidades, comprar equipamentos. Se der certo, vai dar muito errado: a corrida de volta para casa tende a provocar uma demanda difícil de atender, o que pressionaria a inflação já elevada pela entrada de produtos com maior tarifa de importação. Outra expectativa é arrecadar mais para financiar cortes de impostos que Trump planeja fazer sem impactar ainda mais a já pesada dívida dos EUA. Mas não são governos que pagam tarifas. Nem os odiados estrangeiros. Como as tarifas são repassadas aos preços, quem vai bancar o tarifaço será o americano que comprar produtos importados.
3. De concepção: o tarifaço era aguardado. Gigantes financeiras, como Goldman Sachs e universidades de primeira linha, como Yale, projetaram, na pior das hipóteses, tarifas lineares de 25%. Engano de quem projetou? Não, de quem concebeu a possibilidade de sobretaxas de até 145%. Tarifas mais baixas provocariam efeitos negativos, mas não derretimento de mercados e perda de confiança nos Treasuries.
4. De elaboração: como era preciso fazer muitos cálculos, United States Trade Representative (USTR, principal órgão de comércio exterior dos EUA) simplificou: dividiu o superávit comercial de cada país com os EUA pelo total das exportações dessa mesma nação. E dividiu outra vez por dois, para ser "gentil". A inclusão de uma ilha povoada apenas por pinguins e focas nos 10% da "tarifa padrão" reforça o grau de amadorismo.
5. De aplicação: o anúncio foi feito em 2 de abril. As tarifas padrão, de 10%, passaram a incidir já no dia 5 e as punitivas chegaram a entrar em vigor nesta quarta-feira (9) antes de serem suspensas. Se era para negociar, o prazo deveria ter sido maior.
6. De avaliação: na Trumposfera, a China acataria sem chiar uma alíquota que a essa altura soma inacreditáveis 145%. Mas o gigante asiático retaliou – com "gentileza", para até 125% – e o presidente americano acusou o golpe, dizendo que o país oriental havia "entrado em pânico" e "não sabia jogar". A OMC estima que essa soma inviabiliza 80% do comércio entre os dois países.