A Vulcabras não nasceu gaúcha, mas se tornou ao ser comprada por Pedro Grendene, um dos sócios da indústria de mesmo nome. Na marca nascida em Farroupilha, Pedro é sócio do irmão Alexandre, mas toca o outro braço calçadista sem repetir a parceria. Quando seu filho, Pedro Bartelle, assumiu a empresa, em 2015, comandou um duro processo de reestruturação. Agora, aos 70 anos, a empresa vive sua melhor fase. A Olympikus, que veio com a compra de outra gaúcha, a Azaleia, hoje é a marca de tênis mais vendida do Brasil. No ano passado, a Vulcabras teve faturamento recorde, de R$ 2,9 bilhões. O CEO é Pedro Bartelle, que ainda gerencia no Brasil as marcas Under Armour (americana) e Mizuno (japonesa).
Como foi possível obter bons resultados em momento desafiador para o setor calçadista?
Vem do pós-pandemia. Quando tivemos de fechar as fábricas por três meses e meio, a reunião de diretoria, que era semanal, tornou-se diária. Trabalhamos preparando a retomada. Quando veio, ganhamos mercado. O consumo reprimido deslanchou, e muitos não conseguiram atender, principalmente as importações. A decisão de focar no esportivo aumentou a eficiência. Investimos e, felizmente, temos acertado mais do que errado em projetos como democratizar a alta performance na Olympikus. Melhoramos a gestão das duas outras marcas, que tinham deficiências quando eram administradas de outra forma. Estamos fora da curva, é verdade. Nossos percentuais de lucro são superiores a outras companhias de capital aberto auditadas do setor, e o valor absoluto também. Desde que se reestruturou, a Vulcabras se transformou de indústria em gestora de marcas com uma indústria como diferencial competitivo. Somos verticalizados, dominamos todas as etapas, desde a criação até a entrega a clientes e consumidores.
Qual o grau de liberdade para produzir novidades para outras marcas?
Só fazemos contratos longos com marcas internacionais, de 10 a 15 anos, pagamos royalties bem honestos e precisamos de liberdade para importar, clonar, e criar produtos no Brasil. Nosso propósito é construir um país melhor a partir do esporte, e de fato, não só na Olympikus, mas também na Under Armour e na Mizuno, procuramos democratizar. Pela primeira vez na história, os japoneses Mizuno nos deixaram criar tecnologia made in Parobé para uma coleção destinada a alcançar os consumidores. Conseguimos trazer excelente custo/benefício em alta performance. A gente faz aqui, eles testam no laboratório em Osaka. Temos uma parceria de desenvolvimento aberto. Duas universidades têm nos ajudado, a UCS e a USP. Um modelo do Olympikus tem uma placa de grafeno que é pioneira no mundo para corredores de alta performance, desenvolvida entre Parobé e Caxias do Sul. Conseguimos um produto de R$ 800 para competir com outros entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil. Lancei um desafio interno, há cinco anos, de que a Olympikus precisava ganhar uma maratona. Fizemos cem pódios nas maratonas do Brasil no ano passado, temos uma equipe de corredores, como todas as marcas têm. Isso ajuda nos resultados da empresa.
A Vulcabras hoje é uma gestora de marcas que tem uma indústria como diferencial competitivo. E somos sportech por usar tecnologia em todos os processos.
Por que identificar a empresa como gestora de marcas e sportech?
As produtoras de calçado no Brasil sempre foram indústria, mas a Vulcabras hoje é uma gestora de marcas que tem uma indústria como diferencial competitivo. E somos sportech por usar tecnologia em todos os processos. As fábricas têm robótica, realidade virtual. Sempre buscamos avanços tecnológicos, até chegarmos à conclusão que era bom chamá-la de sportech para se diferenciar das que não usam tanta tecnologia.
Além de tecnologia, vocês perseguem sustentabilidade, como isso influi no resultado?
As práticas sustentáveis ajudaram a melhorar a nossa margem. Temos três marcas, a Olympikus, que hoje é líder de mercado, que mais vende volume de pares no Brasil, mais que qualquer outra marca, nacional ou internacional. Não conheço outra empresa que seja tão sustentável quanto a Vulcabras. Usamos 100% de energia eólica, todo resíduo é reutilizado no processo, e uma pequena parte que não conseguimos utilizar temos um parceiro que reprocessa e que vira pavimentação de estrada. Temos programa de jovens aprendizes, e só no ano passado foram 780 efetivados nas fábricas. Hoje temos 18 mil colaboradores. Também temos cerca de 55 mil crianças impactadas com nossos programas de leitura, alfabetização, nas regiões onde a gente atua, aqui no Estado, na Bahia e no Ceará.
Os financeiros costumam reclamar que o processo sustentável gera muito custo. Para nós, prática sustentável não é gasto, é investimento.
Ser mais sustentável foi um decisão interna ou houve pressão externa?
Os financeiros costumam reclamar que o processo sustentável gera muito custo. Para nós, prática sustentável não é gasto, é investimento. O custo de energia eólica hoje é 30% mais barato do que comprar no mercado livre, porque fiz um investimento em parceria com a Casa dos Ventos. Temos uma minifábrica de coprocessamento dos resíduos que permite utilizar na nossa matéria-prima. Na entressola, até 20% vem de resíduos do próprio processo, só para citar um exemplo. Nosso grande pilar é o uso eficiente da matéria-prima, que é um tema muito caro para a sociedade, que traz diferencial na formação de preço e nos custos de produto. Então, tem como você organizar todas essas práticas sustentáveis e não ser custo, ser investimento, que gera margem. E as empresas não podem mais gerar todas essas práticas não sustentáveis, como nas asiáticas, sejam humanas ou na produção.
Está crescendo a tendência de lojas próprias de marcas esportivas, vocês pretendem avançar?
Temos 10% da venda direta pelo e-commerce, e temos uma visão da importância das lojas monomarca para o futuro do posicionamento das marcas. Hoje somos o maior fornecedor de Decathlon, World Tennis. Na Centauro, só perdemos da própria Nike, que é deles. Então queremos ter no futuro as nossas lojas próprias monomarca, começando pela Under Armour. Morei quatro anos na Argentina, fui abrir nosso negócio em 2003, depois daquela grande crise. Lá, a maior parte dos tênis é vendida em lojas esportivas. Estamos vendo a possibilidade de abrir lojas próprias, que serão conectadas ao nosso e-commerce, para entregar uma melhor experiência para o nosso consumidor. É um plano em estudo.
O Brasil é o quinto maior produtor de calçados do mundo, o único que sobreviveu fora da Ásia.
Quais são os desafios da indústria calçadista nacional hoje?
O maior é a indústria asiática, a produção em países onde os custos são muito menores do que os brasileiros. O Brasil tem excelentes fábricas, muita inteligência, mão de obra muito boa. Nós é que ensinamos os asiáticos, exportamos os nossos técnicos do RS para lá. O Brasil é o quinto maior produtor de calçados do mundo, o único que sobreviveu fora da Ásia. Então, a grande preocupação é que existam condições igualitárias de custos, trabalho e subsídios para competir com os asiáticos. Onde está errado? Lá, não aqui. A indústria calçadista é a quinta maior empregadora da indústria de transformação no Brasil. E é do segmento esportivo que migra toda a tecnologia para o setor, porque são os produtos mais elaborados. No Brasil, temos todos os processos que existem no mundo, todas as máquinas, os softwares, a robótica. Não falta nada, e provo isso com o depoimento dos administradores das marcas internacionais que vão a nossas fábricas e dizem 'vocês podem fazer o que vocês quiserem aqui'.
Não têm funcionado as salvaguardas do Brasil para calçados chineses?
A medida antidumping aplicada contra a China não funciona porque os maiores produtores de tênis estão isentos. Além disso, a maior importação de calçados no Brasil já não é mais chinesa, é vietnamita, indonésia. Desde que se aplicou a medida, as importações chinesas diminuíram, mas as dos países vizinhos aumentaram no mesmo ano. No ano que se aplicou o antidumping contra a China, a importação de calçados cresceu 40% no Brasil. A Vulcabras está bem, as empresas conseguem sobreviver, mas poderiam crescer muito mais, abastecer o mercado brasileiro, e quem sabe exportar. Nós exportamos só 8% da produção. Chegou a ser 15%. Se tivéssemos nível de competitividade igual ao asiático, seríamos uma solução para América Latina, América do Norte, o número de empregos na indústria poderia dobrar.