Nunca quis ser Paquita.
Sou da geração que se criou vendo Xou da Xuxa na TV e fui uma “baixinha”, como dizia a rainha seminua mandando “beijinho, beijinho, tchau, tchau” todas as manhãs. Até escrevi um e-mail para ela (quando a internet chegou lá em casa) e fiquei feliz em receber uma resposta, ainda que padronizada.
Sim, fiz parte da legião de fãs da apresentadora como quase todo mundo na faixa dos 40 anos, mas jamais cogitei ser Paquita. Fui uma exceção entre as garotas que viveram os “loucos anos 80” e projetaram seus sonhos naquelas meninas-mulheres perfeitinhas.
Na época, tornar-se “amiga da Xuxa”, ser loira, magra, usar maquiagem e figurino, dançar, cantar e, claro, ficar famosa como assistente de palco na TV Globo eram ideais de vida de muitas contemporâneas. Só que era preciso usar aquelas botas de cano alto que subiam acima dos joelhos e aqueles shortinhos brancos.
Não, não, isso não era para mim, uma pirralha no interior de Santa Cruz do Sul, acostumada a correr rua, subir em árvores e jogar bola com os guris. Eu não me encaixava nos padrões e estava muito bem, obrigada.
Ah, os padrões.
Nesta semana, para desgosto do meu marido (que teve de aguentar), assisti à série documental Pra Sempre Paquitas. A produção bateu recorde de audiência no Globoplay e tem provocado uma mistura de sentimentos nos fãs, do saudosismo à revolta. Li em algum lugar, que os depoimentos “enterraram o sonho de uma geração”.
Não é para menos. O finado Teatro Fênix (na famosa “Rua Saturnino de Brito, número 74, Jardim Botânico, Rio de Janeiro, CEP 22470”) não era bem o palco mágico (da nave cor de rosa) que a gente imaginava. Era, isso sim, o epicentro de uma sucessão de abusos, constrangimentos e assédios, públicos e privados.
Em uma grande DR coletiva mal resolvida e cheia de mágoas e ressentimentos, as ex-Paquitas revelaram ofensas proferidas pela temida Marlene Mattos, que se negou a dar entrevista. Entre os absurdos relatados, elas contam que, esporadicamente, eram obrigadas a tirar a roupa para ter os corpos avaliados pela empresária. Tinham de se manter magérrimas, do contrário, “estavam fora”. Eram xingadas o tempo todo.
E Xuxa? Foi omissa, conivente e, de certa forma, também vítima — pelo menos, essa é a versão dela. Como pode? Pode, porque era assim. Naquele tempo, era “normal” o assédio (que a maioria das assediadas, em geral mulheres, nem sequer sabia que tinha esse nome), assim como era plenamente aceitável a sexualização precoce de crianças e adolescentes na TV. Hoje, os pais que gritam contra a tal “doutrinação de gênero” cuspiriam fogo na frente do teatro.
Ah, a década de 1980. Até hoje, não sei como a gente sobreviveu. Ainda bem que eu não quis ser Paquita.