Se considerarmos que somos jogados no mundo, sem nenhuma noção de que inimigos vamos enfrentar nem de que armas precisaremos, a vida será sempre um exercício assustador de tentativa e erro.
E como desembarcamos sem um manual de instruções para cada situação, interagindo com pessoas sempre tão diferentes, não há a possibilidade que se estabeleça uma estratégia de defesa, e fica muito claro que o máximo que podemos fazer é tentar não repetir os erros, na expectativa generosa que a maturidade nos encontre sábios e serenos.
Uma fantasia precoce na vida moderna é de que seria muito bom se tivéssemos alguém com quem compartilhar nossas dúvidas ou, idealmente, alguém para copiar. Sem ombros e sem modelos, nosso viver assume ares de um videogame em que estamos eternamente tentando desviar de inimigos impiedosos e traiçoeiros, as vezes reais, em outras imaginários.
Sem airbags emocionais confiáveis, saímos de casa todos os dias, de peito aberto ao que o mundo ofereça, de melhor ou pior, e sem aviso prévio.
Sem airbags emocionais confiáveis, saímos de casa todos os dias, de peito aberto ao que o mundo ofereça, de melhor ou pior, e sem aviso prévio.
Os otimistas considerarão que este é o lado mais excitante da vida, enquanto os pessimistas se consagrarão ao verem que tudo o que previram como desastre desastrou.
O nosso “modelo de fábrica” original traz a desconfiança como único e precário recurso de proteção, e, sem saber como utilizá-la, incorremos com frequência no exagero de desconfiar de todos, e é certo que não precisamos chegar a esse extremo, porque não é tão raro assim que encontremos pessoas genuinamente boas.
É certo que, se confiarmos muito, algumas vezes nos quebraremos, mas os que desconfiam sempre se tornam amargos pela escassez de reciprocidade de afeto, e essa é matriz da mesquinhez.
Quem tem tempo de ouvir as histórias ricas que brotam nos ambulatórios pobres descobre formas ainda mais deprimentes de mau-caratismo, como aquele que, sem a barreira da desconfiança, prospera na boa fé.
Conheci a Marialva quando a operei no final dos anos 1990. Na época, ela era classe média, mas morava em casa própria, com o marido aposentado, e tinha um plano de saúde. Recentemente, quase não a reconheci ao entrar na minha sala, trazida pela secretária com o alerta de que precisava muito me ver, mas não era uma consulta.
— Viuvei há quatro anos e, uns tempos depois, minha irmã pediu que acolhesse meu sobrinho que arranjara um emprego na Capital — ela contou. — Sempre oferecido para me ajudar, foi tomando o controle das minhas contas, e no ano passado descobri que ia ser despejada se não vendesse a casa para pagar as dívidas, que nem entendi ainda de onde brotaram. Agora só tenho SUS e moro de favor com uma prima, em troca de cozinhar e limpar a casa. Às vezes penso que foi bom ter ficado sozinha. Se o Anselmo ainda estivesse vivo, eu teria morrido de vergonha dele. Agora estou aqui para ver se o senhor me consegue umas amostras grátis de antibiótico. Qualquer antibiótico!
Desconfiar de quem não conhecemos parece mais ou menos espontâneo, mas se a questão for dinheiro, talvez seja recomendável desconfiar também, e muito, de quem nos conhece mais, pois esses sabem, como ninguém, nos fazer sofrer.