O problema do quanto precisamos ter para sermos felizes depende menos do que temos e muito mais do quanto acreditamos que merecíamos.
A distância abismal entre os extremos da curva da ambição explica a felicidade genuína dos que quase nada têm e a amargura dos insaciáveis. Para os primeiros, qualquer coisa que ganhem ultrapassa a expectativa sempre modesta e gera uma gratidão comovente. Para os outros, nada corresponderá aos anseios de conquistas que fizeram por merecer ou supõem que fizeram. Nenhuma dádiva aplacará a ânsia de poder e reconhecimento e, de preferência, de ambos e em escala superlativa. A última semana do ano, pela tendência inevitável de inventariar o que fizemos, expõe essas diferenças de espírito de maneira muito evidente. A entrega de uma modesta cesta de Natal oferecida pela empresa ao seu funcionário mais humilde coloca-lhe um brilho no olho pela antevisão da alegria com que será recebido na sua casinha alugada. O filho do milionário poderá voltar para a mansão emburrado porque saiu para dar um passeio com seu novo carro importado e não encontrou lugar para estacionar.
Perguntado num programa de rádio o que significava, para mim, o Natal, não tive dúvida em reconhecer que é o estímulo ao congraçamento. O encanto está em aproximar as pessoas, mesmo aquelas que não se encontraram para jantar durante o ano inteiro. E esperar que o convívio dilua as divergências que eventualmente existam, contando que o Natal, de um jeito meio mágico, desarma ânimos exaltados.
Essa ânsia de aproximação familiar explica o esvaziamento dos hospitais na proximidade das festas e o vazio do olhar dos que não conseguiram ser liberados.
O João Estevam, com câncer avançado, me comoveu tanto pela tristeza que resolvi atropelar a realidade: “João, considere este Natal preso aqui como um investimento pelos muitos que terás no futuro”. A resposta veio pronta: “Deus lhe compense pelo esforço de me convencer que isto será possível!”. E o olho seguiu opaco.
Quando entrei na enfermaria de três pacientes, dois dos quais eu tinha prometido alta na véspera de Natal, encontrei-os de banho tomado e sacolas empanturradas. O terceiro paciente eu não conhecia, e era o único ainda em pijamas. Quando quis saber se ele também sairia, confessou, desanimado: “Pois meu doutor disse que sim, mas ainda não apareceu!”. Querendo ajudá-lo, prometi dar uma olhada no prontuário, para ver se a alta era possível, mas ele antecipou: “Mas ainda vai me sobrar um problema, porque me faltam os R$ 35 da passagem”.
Disse que eu resolveria isso, mas ainda havia outra pendência: “O senhor vai ter de ligar para este celular da minha sobrinha, para que eles esperem por mim na rodoviária”. Tudo resolvido, ele festejou: “Deus me ajuda porque eu sempre tive pena de pobre azarado!”.