Toda mudança é sofrida e acompanhada de algum sentimento de perda ou de frustração. É assim na demissão involuntária, no reconhecimento do fracasso de algum projeto de vida ou no fim de uma relação amorosa. Se essas mudanças sem que se mude de cidade ou continente já machucam, imagine o sofrimento de quem arranca a vida pela raiz, que é o que fazem os que abandonam o passado para recomeçar em outro lugar.
Convivi muito com imigrantes, e aqui uma triagem é indispensável: há os que fazem da emigração um recurso último de sobrevivência, porque cresceram em ambientes incompatíveis com uma vida digna para si e principalmente para suas proles e, então, por falta de alternativas, toda mudança, mesmo que com ares de fuga, se justifica. Um segundo grupo é formado pela legião de competentes subvalorizados que tiveram seus méritos ignorados por quem devia prestigiá-los e, quando reconhecidos por estranhos, partem com um misto de regozijo e revanche. Como todos têm mais do que obrigação de buscar o melhor para si, também esses batem asas, cheios de razão.
Mas há um terceiro contingente que sempre me inquietou: o dos que parecem não pertencer a lugar algum e abanam as tranças por qualquer razão ou nenhuma que se perceba, e carregam lembranças, histórias e talvez alguma reminiscência carinhosa em três ou quatro malas grandes que depois repousarão em outra garagem remota, sempre inquietas à espera de novo surto de renovação ambiental.
Provei a angústia de mudar de cenário, palco e teatro uma vez na vida. Com 30 e poucos anos, parecia uma oportunidade dourada. Convidado a permanecer na Clínica Mayo, aquilo sacudiu meus alicerces. Racionalmente, confrontada com a realidade que me esperava na Santa Casa dos anos 1980, a maioria das pessoas não pensaria duas vezes, e eu remoí umas duzentas. Depois de dormir mal durante uns três meses de um inverno inesquecível pela dúvida e muito andar pela cidade, descobri numa manhã que simplesmente não conseguiria deixar para trás as coisas que não saberia como substituir. Hoje não me arrependo.
A necessidade desafiadora de construir aqui o que já estava pronto lá serviu para justificar minha vida, mas se recordo alguns argumentos que usei para convencer a mim mesmo de que não suportaria debandar, tudo me parece prosaico demais.
Quem entenderia a paixão pela cor da cidade no outono, ou pelo colorido das ruas com os jacarandás de outubro, ou a saudade da Livraria Aurora, um sebo ali nos altos da Mal. Floriano, onde títulos antigos aguardavam ávidos que alguém os acolhesse? Ou de quem recordava com carinho o cheiro de churrasco nas manhãs de domingo? E como explicar aquela paz macia que enchia o coração não religioso, depois de 15 minutos sentado, sem rezar, na Capela da Santa Casa. Ou ainda, como racionalizar a emigração de um tipo que sentia o peito insuflar como se fosse explodir ao entrar no Olímpico cheio em dia de decisão?
Depois de tantas dúvidas, uma única certeza: os aborígines têm raízes mais profundas do que força para arrancá-las. Melhor deixá-los em paz, fincados naquele chão, que pode parecer árido, mas marejam os olhos quando o chamam de seu.