A captação de órgãos sempre foi uma tarefa grandiosa, que desencadeia a energia euforizante e que explica o espírito solidário das equipes e a ausência de cansaço nas intermináveis madrugadas.
O reconhecimento das pessoas que trabalham em hospitais onde se dá a captação com atitudes de zelo quase maternal, oferecendo alimentação e carinho solidário, confirma que todos os envolvidos estão tomados de uma emoção especial e intensa.
No outro extremo, é sempre comovente a atitude das famílias doadoras, assistindo com olhar indefinido as equipes captadoras se afastando com suas caixas de isopor contendo os órgãos de seus amados. Aprendi, depois de algum tempo, que aquele olhar é uma mistura de dor pela perda e gratificação por conta de um gesto de incomparável generosidade e grandeza, que haverá de salvar vidas de outras pessoas, poupando famílias que nunca conhecerão o mesmo sofrimento que naquele momento as consome.
Todos sabem que a doação não eliminará o sofrimento deles, mas não duvidem que aquela atitude haverá de dar algum sentido à estupidez da morte na juventude, e que isso, de alguma maneira e em algum momento, será materializado na gratidão dos desconhecidos que sobreviveram.
O Cláudio, o Jean, o Jackson, o André Augusto e o Marcos eram muito jovens (o mais velho deles tinha apenas 31 anos) e certamente nunca pensaram em ser heróis. Queriam apenas viver com intensidade a maravilhosa profissão que os acolheu e envelhecer com muitas histórias para contar aos seus netos, que haveriam de disputar espaço nos seus joelhos, deslumbrados com a coragem daquele avô que não tinha medo de nada.
Vinte anos depois, o desespero, a incredulidade e a tristeza pela perda dos nossos meninos seguem vivas em nós
J.J. Camargo
médico
Tendo participado de dezenas de captações em aviões precários e noites tormentosas, percebi que nunca falávamos de medo porque desenvolvêramos, inconscientemente, a ideia ingênua de que nada nos aconteceria. A catástrofe, e com ela a percepção de que a blindagem era falsa e que a morte tem critérios aleatórios de seleção, se materializou em pânico e frustração, que conservam aquele episódio incompreensível até hoje.
Vinte anos depois, o desespero, a incredulidade e a tristeza pela perda dos nossos meninos seguem vivas em nós, mas a lembrança da alegria do Jean ligando de dentro do avião, com a informação de que, apesar da chuva, o piloto tinha recebido autorização para decolar, tem servido para sublimar o sofrimento e assumir que a vida tem de continuar.
Quanto mais não seja para desafiar a ironia do destino que ceifou vidas de jovens que só queriam evitar que outras se perdessem.
Incrível que 20 anos não significaram nada para apagar a dor da tragédia que começou a ser pressentida com a espera inútil, as chamadas desesperadas para o telefone que sempre caíam na caixa, o intervalo sem notícias e, por fim, o comunicado seco e formal e a relação dos mortos anunciados pelo rádio, que conservam a noite de 1º de outubro de 1997 presente como uma chaga dolorosa.
A cada ano, as homenagens se repetem, diferentes no formato e iguais no sentimento.
Cada vez que lembramos a energia que eles irradiavam, percebemos que a lembrança e a saudade se encarregam de remover as crostas do esquecimento, para assegurar que eles seguirão vivos enquanto viverem os que tiveram o privilégio do convívio com a doçura dos seus corações.