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Quem trabalha com transplante está sempre margeando o desespero e o sofrimento, tentando dar naturalidade ao convívio com o aleatório, representado pela imprevisibilidade do tempo de espera por um doador compatível, que pode ser curto, demorar muito, ou nunca chegar. Sobreviver a estas incertezas nos ensina a buscar abrigo sob o grande guarda-chuva da esperança, que tantas vezes, nas idas e vindas de doações que prometem e falham, parece desabar.
Quando surge um doador potencial, enquanto se processam os testes finais de viabilidade do órgão e compatibilidade imunológica, é rotina que um ou mais possíveis receptores sejam chamados ao hospital e aguardem em jejum pela confirmação, resultando invariavelmente na alegria de um e na frustração de outro ou outros, ao final de algumas poucas horas de previsível estresse. Sempre me comoveu a ansiedade dos pacientes que, consumidos por uma angústia atroz, certamente rezam, divididos entre o medo do desconhecido e a esperança de sobreviver, e ali, de coração acelerado e peito arfante, mal conseguem ouvir as palavras de apoio dos familiares empenhados em confortá-los.
Uma das tarefas médicas mais difíceis é dispensar os que não foram contemplados, para que voltem para suas casas e recomecem a massacrante espera por uma futura nova chamada que abrirá a porta para outro ciclo de ansiedade, e pode outra vez resultar em nada. Por mais que o médico discuta com antecedência esta possibilidade de expectativa frustrada, não há como realmente elaborar esta situação sem sofrimento.
A festejada disponibilidade do telefone celular tem facilitado que receptores residindo longe do centro transplantador sejam chamados para que se ponham a caminho e aguardem instruções enquanto viajam. Fácil imaginar a ansiedade com que cada nova chamada do médico será atendida nesta circunstância.
Um dos nossos transplantados só fez a viagem completa na quarta tentativa. Nas outras três, em diferentes pontos do caminho, ele teve o seu sonho de ressuscitação temporariamente abortado. Numa dessas vezes, eu cumpri a tarefa desagradável de dar-lhe a má notícia e quando tentava mantê-lo animado, fui interrompido: “Não precisa me consolar doutor, nada me anima mais do que confirmar que, de fato, eu estou na lista de espera e minha vez haverá de chegar!”
Conversava sobre isto com o Marcelo Cypel, porto-alegrense que lidera com brilho reconhecido o programa de transplante pulmonar de Toronto, e ele contou-me que um paciente dele, que vivia a duas horas da cidade, foi chamado oito vezes para finalmente conseguir o transplante, já numa condição de reserva pulmonar muito precária. Na última das tentativas fracassadas, o Marcelo se aproximou para, de alguma maneira, se justificar, e o paciente poupou-lhe do constrangimento: “Não precisa se desculpar doutor, eu continuo animado porque descobri que neste rio tem peixe”.
Não há o que abata quem tem o sentimento universal da esperança, que, no sofrimento, só prospera no coração dos bem-amados. Esta junção de amor para dar e amor para receber torna-os inquebrantáveis. Os médicos que se expõem ao drama dos pacientes, e inevitavelmente se comprometem com a ansiedade deles, sabem disso. E contam com isso.