Não tem jeito, a construção de uma sociedade civilizada é um processo longo, demorado e, às vezes, francamente exasperante.
Meu primeiro contato com o mundo do lado de lá foi bem constrangedor. Tinha recém chegado a Rochester, uma cidadezinha do meio-oeste americano, para uma pós-graduação na famosa Clínica Mayo, e atravessei uma ruazinha quase deserta, em diagonal, ignorando a faixa de segurança. Quando alcancei a calçada oposta, um guarda me recepcionou como a um ET e explicou que esse comportamento era inaceitável. Uma velhinha que se aproximava ouviu a admoestação e fez a cara universal de bem feito.
No Brasil de hoje, algumas cidades, mais do que outras, adotam condutas de civilidade que se transformam em marcas registradas e são exercitadas com determinação e um certo orgulho por seus cidadãos, constrangendo os violadores. Experimente, por exemplo, jogar um papel na rua em Curitiba, e você vai ser tratado como um suspeito de pedofilia numa reunião de pais e mestres.
O certo é que, nesses lugares, por um processo educativo continuado, o comportamento se modifica gradualmente e todos passam a colaborar, no mínimo para evitar o vexame.
Na média, entretanto, seguimos desconsiderando normas elementares de convívio e, na maioria das grandes cidades brasileiras, ninguém respeita regras de trânsito. A principal razão para alguém não atravessar as ruas por entre os carros em movimento, provavelmente, é o medo de ser atropelado por algum motoqueiro apressado.
Se alguém quiser avaliar o nosso verdadeiro nível de civilidade, passe uns dias num grande balneário. Com cuidado, porque depois das férias você precisa voltar ao trabalho para seguir pagando os impostos.
Como nas férias as pessoas se sentem assumidamente mais liberadas, esse é o momento e o local para se descobrir o quão civilizados, de fato, somos. O cartão de visita são as camionetes enormes, ruidosas e cafonas, visivelmente adaptadas a um esporte muito radical: a caçada a esses pedestres desentendidos que pretendem ignorar que as ruas têm dono.
E o ruído estridente dos supermotores representam uma primitiva demarcação de território entre a tribo dos poderosos donos da rua e os tímidos que tentam atravessá-la com a instabilidade de chinelos de dedo.
Sentado à beira-mar, deliciado com um milho verde, não consegui ignorar o ruído das motos, aceleradas no limite sempre que o garotão vislumbrava uma menina bonita. Mas será que não existe uma maneira mais civilizada de atrair a fêmea, considerando o quanto é pequena a probabilidade de que ela, além de linda, seja surda? E qual é o objetivo de intimidar os pedestres que eventualmente dão um passo na rua porque a calçada está superlotada? Que necessidade mais estúpida de afirmação. Soube que quando se aproximam as férias, as prefeituras mandam repintar as faixas de segurança.
E para que servem? Aparentemente só para registrar com precisão o local onde os distraídos serão atropelados!
Percebam que, se esse comportamento extravasa na praia, onde todos estão teoricamente dando um repouso aos seus tacapes, fica fácil entender a agressividade da vida urbana, quando todos, resolvidos ou não, voltam à pressa, à competição, e ao neurotizante tempo perdido nos engarrafamentos. Das ruas e da vida.
Palavra de médico
J.J. Camargo: o longo caminho da civilidade
Colunista escreve em todas as edições do caderno Vida
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