Em duas semanas, rebeldes armados conseguiram na Síria o que oposicionistas tentaram durante meio século: derrubar um dos mais antigos regimes autoritários do mundo. A família Assad controlava há 50 anos esse que é um dos países nevrálgicos do Oriente Médio. No momento, o destino do presidente Bashar al-Assad é incerto, só se sabe que ele deixou a capital, Damasco. A Rússia, aliada dele, diz que ele deixou o país.
Necessário rememorar como chegamos aqui. Bashar é filho do general Hafez Al-Assad, envolvido em três golpes de Estado na década de 1960, que permitiram ao partido Baath (Ressurreição) chegar ao poder. Era um movimento de inspiração socialista, que pregava o nacionalismo árabe e não era religioso (tanto que tinha militantes cristãos e muçulmanos de diversas tendências). Derrubou antigos regimes não apenas na Síria, mas também no Iraque.
Só que em 16 de novembro de 1970 Hafez al-Assad deu um golpe dentro do golpe, se livrou de antigos aliados no Baath e virou chefe de Estado sozinho. Ele manteve o presidente deposto, Nureddin al Atasi, na prisão por 23 anos.
Hafez al-Assad governou com mão de ferro, sem liberdade de oposição e de imprensa, até sua morte, em junho de 2000, mantendo os filhos em postos-chaves do governo. Um deles, Bashar, assumiu então o poder. Assim como o pai, ele pertence aos alauitas, um ramo minoritário do islã cujos aliados principais são cristãos na Síria. Já a maioria dos sírios é muçulmana sunita.
Em 2011, eclodiu em todo o Oriente Médio uma rebelião de jovens que questionou ditaduras, chamada Primavera Árabe (uma alusão à famosa Primavera Estudantil de Maio de 1968 em Paris). Começou na Tunísia, depois chegou ao Egito e culminou numa guerra civil na Líbia (que este colunista cobriu). Os três regimes, de décadas, ruíram em meses. As rebeliões chegaram também na Síria, mas a família Assad usou da receita de sempre, a violência, para contestar os protestos. Aí a oposição se armou.
Não uma oposição, mas várias. Bashar al-Assad enfrentou de forma simultânea rebeliões diversas. A primeira, de militares não religiosos (que fundaram o Exército da Síria Livre, apoiado pelo Ocidente). Em paralelo, foram lançadas ofensivas pela Al-Qaeda (movimento sunita terrorista fundado por Osama Bin Laden) e de uma dezena de grupos extremistas muçulmanos, que brigavam também entre si. Por último, uma parte da Síria foi tomada pelo Estado Islâmico - a mais radical agremiação muçulmana já fundada, conhecida por cortar cabeças de reféns.
Assad ganhou fôlego no poder em 2014, quando uma rara união de esforços foi formada para expulsar o Estado Islâmico da Síria e do Iraque. De um lado, norte-americanos e turcos (que permanecem apoiando alguns grupos sírios e curdos até hoje). De outro, russos, iranianos e libaneses do movimento xiita Hezbollah, em apoio direto ao governo sírio. Em ações paralelas, conseguiram esmagar o Estado Islâmico, por volta de 2017. Desde então o controle permanecia em mãos do regime, embora com presença de diversos grupos armados em hibernação.
A rebelião atual ganhou força a partir do enfraquecimento dos aliados de Assad no Oriente Médio. O Irã e seu principal braço no Líbano, o Hezbollah, sofreram grandes derrotas para Israel nos últimos meses. Eles eram o principal apoio do regime sírio. Em segundo lugar, os Assad se apoiavam em tropas da Rússia, que mantém duas bases aeronavais na Síria: Latakia e Tartus, ambas no Mediterrâneo. Só que os russos estão focados em sua invasão na Ucrânia e não podem deslocar muitos militares para atuar em território sírio.
Os rebeldes sírios viram na fraqueza dos inimigos o momento para retomar a ofensiva. Uma união entre os militares dissidentes do Exército da Síria Livre (ESL) e os muçulmanos extremistas do grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS ou Organização para a Libertação do Levante, oriunda da Al Qaeda), conquistou em 10 dias as cidades de Aleppo e Homs e marchou rumo à capital, tomada neste fim de semana. Outras frentes opositoras partiram do Sul e do Leste. Por onde passaram, os rebeldes derrubaram estátuas que homenageiam os Assad.
O futuro? Uma incógnita, como tudo no Oriente Médio. Tudo indica que uma colcha de retalhos de interesses ideológicos variados assume o poder na Síria. O líder formal da rebelião é do HTS, mas a vitória terá de ser partilhada com militares dissidentes do governo e passa pelo necessário acordo com os curdos. Russos e norte-americanos possuem tropas no país, assim como remanescentes do Estado Islâmico (acredite, se quiser...).
É provável que Rússia, EUA e Turquia se unam para tentar impedir a radicalização muçulmana de fazer uma vingança sangrenta contra os cidadãos moderados que viviam sob o regime. E evitar a criação de um regime similar ao Talibã afegão, numa Síria situada a pouco mais de mil quilômetros da Europa.