
Sean Baker fez história no Oscar 2025: tornou-se o primeiro cineasta a levar para casa quatro estatuetas douradas pelo mesmo filme. Ganhou o principal prêmio, como um dos produtores de Anora (2024), o de melhor direção, o de melhor roteiro original e o de melhor edição. Também ganhador na categoria de melhor atriz, com Mikey Madison, o título já está disponível para aluguel digital no Amazon Prime Video, no Google Play e no YouTube.
No Oscar de 2020, o cineasta sul-coreano Bong Joon-ho também subiu quatro vezes ao palco, quando Parasita (2019) venceu os prêmios de melhor filme, direção, roteiro original e longa internacional, mas o troféu dessa categoria fica com o país ganhador, não com o diretor.
Anora foi o filme mais premiado da temporada passada. A lista inclui a Palma de Ouro no Festival de Cannes e os troféus de melhor filme pela Associação dos Produtores dos EUA (PGA) e de melhor direção pelo Sindicato dos Diretores dos EUA (DGA.

Em cada discurso na cerimônia do Oscar, Baker destacou um aspecto de seu trabalho. Ao receber o prêmio de roteiro original, por exemplo, homenageou os e as profissionais do sexo. Ao ganhar a categoria de direção, defendeu a importância da sala de cinema na era do streaming:
— Em uma época em que o mundo pode parecer muito dividido, (ir ao cinema) é mais importante do que nunca. É uma experiência comunitária que você simplesmente não tem em casa. E, agora, a experiência de ir ao cinema está ameaçada. Os cineastas continuam fazendo filmes para a tela grande. Distribuidores, por favor, concentrem-se primeiro e principalmente nos lançamentos de seus filmes nos cinemas.
Na sua última manifestação, Baker enalteceu o cinema realizado fora dos grandes estúdios de Hollywood:
— Quero agradecer à Academia por reconhecer um filme verdadeiramente independente. Este filme é feito de sangue, suor e lágrimas de incríveis artistas independentes.
Sean Baker e os marginalizados

Mistura de comédia romântica tresloucada e drama amargo sobre o chamado sonho americano, Anora tem como personagens principais uma prostituta nova-iorquina e um jovem milionário russo. É o oitavo longa-metragem de Baker, estadunidense de 54 anos que é um dos nomes do cinema independente estadunidense mais adorados pela crítica — mas isso não quer dizer que seus filmes sejam pouco acessíveis pelo grande público.
Na sua obra, Baker imprime um olhar humanizado e caloroso para os marginalizados, como moradores da periferia, imigrantes ilegais e trabalhadores do sexo. Em nome do realismo e do naturalismo, as cenas de transa são cruas, despudoradas, e costumeiramente esses tipos são vividos por atores desconhecidos ou amadores. O elenco de personagens convida a um comentário crítico, mas com senso de humor, sobre o contexto sociopolítico dos Estados Unidos.
O título que fez Baker despontar é Tangerina (2015), disponível na plataforma Filmicca. Rodado na Califórnia com três smartphones iPhone 5S, acompanha uma prostituta transexual, Sin-Dee Rella, que sai da prisão e descobre que o namorado e cafetão está de romance com uma mulher cisgênero.
Seu filme seguinte, Projeto Flórida (2017), presente no menu da Max, mostra a vida de quem mora no subúrbio de Orlando, na Flórida, no caminho para o parque da Disney, em motéis de beira de estrada que parecem os velhos conjuntos habitacionais aqui do Brasil e que nos quais se amontoam famílias, muitas delas expulsas de suas casas por causa da crise hipotecária de 2007 nos EUA. No papel do gerente do motel Magic Castle, Willem Dafoe disputou o Oscar de ator coadjuvante.
Red Rocket (2021), que pode ser alugado em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube, é sobre um ator pornô que, por causa da sua decadência em Los Angeles, volta para sua pequena cidade natal no Texas, onde vai tentar se aprumar para, quem sabe, recuperar os tempos de glória. A época em que se passa o filme (2016, ano da primeira eleição de Donald Trump à presidência dos EUA), a personalidade do protagonista e o cenário da trama permitem refletir sobre a ascensão política do empresário midiático que acabou de tomar posse para um segundo mandato na Casa Branca.
A trama de "Anora"

Em Anora, Sean Baker leva a ação para Nova York — mais precisamente para o bairro do Brooklyn —, com uma esticadinha em Las Vegas. Lá, encena uma história que acena ao clássico conto de fadas Cinderela e ao filme Uma Linda Mulher (1990), mas na ótica peculiar do cineasta.
Sua personagem principal é Ani, apelido pelo qual prefere ser chamada a stripper e garota de programa interpretada por Mikey Madison, hoje com 26 anos. Depois de fazer papéis menores em Era uma Vez em... Hollywood (2019) e em Pânico (2022), a atriz se credencia como uma nova estrela graças a seu desempenho em Anora. Madison atinge um raro equilíbrio: sabemos que ali está uma artista, mas também conseguimos enxergar em Ani uma pessoa real, com autenticidade, sensualidade, potestade, vulnerabilidade e até um tanto de insanidade. Impetuosa mas afetuosa, ela é o motor do filme.
A montagem assinada pelo próprio Sean Baker é muito eficiente em ilustrar a rotina exaustiva de Ani, que pula de um cliente ao outro na boate, com o máximo de profissionalismo. Certa noite, o chefe apresenta a ela Ivan Zakharov, o Vanya, 21 anos, filho de um oligarca russo. Encarnado por Mark Eydelshteyn, o personagem vive na farra, bebendo com a turma de amigos ou jogando videogame na sua mansão.

O que começa como, ora, uma transação comercial vai, pouco a pouco, evoluindo para algo que podemos chamar de romance juvenil, com toda sua energia e sua inconsequência. Até que, em meio a uma brincadeira, os dois decidem dar um passo mais sério: um casamento em Las Vegas, que daria o green card para Vanya — um modo de evitar seu retorno à Rússia, onde teria de trabalhar para seu pai — e um anel de diamantes "com pelo menos três quilates" para Ani.
O que acontece daí em diante é absolutamente previsível, embora muitos colegas de imprensa enalteçam como uma revirada disruptiva. Eu antevi praticamente todos os rumos tomados, tanto os cômicos quanto os dramáticos, o que intensificou a percepção — essa, sim, compartilhada com vários outros jornalistas — de que o filme é mais longo do que o necessário (são duas horas e 19 minutos).

Para o meu gosto, falta também um investimento maior no subtexto: entende-se a crítica de Sean Baker à sociedade capitalista que fabrica sonhos coloridos para depois destrui-los, um universo onde as tentativas de ascensão esbarram no regramento não escrito da implacável exclusão social. E é evidente que Ani representa a resistência e o enfrentamento à masculinidade dominadora e exploradora (embora praticada por homens patéticos).
Mas essas ideias ficam por demais escondidas sob a superfície de sexo, tensão, comicidade, caos e violência que aproxima Anora de alguns filmes dos irmãos Coen (Fargo, Onde os Fracos Não Têm Vez) e da obra dos irmãos Safdie (Bom Comportamento, Joias Brutas).

Dito isso, também vale ressaltar a presença de coadjuvantes marcantes e a existência de momentos antológicos. Karren Karagulian saboreia cada diálogo de escárnio ou ameaça do sujeito que abandona o batizado do próprio afilhado para tentar resolver o imbróglio do casamento de Ani e Vanya. E a câmera se enamora de Yura Borisov (ator de Compartimento Nº 6) desde que surge em cena como um capanga de poucas palavras.
Toda a sequência em que a realidade bate à porta de Ani é exemplar na sua mescla de humor, ação e desmoronamento emocional — não só da protagonista, mas também do espectador. E a célebre cena do carro é um primor na sua mistura silenciosa de fúria com resignação, de romantismo com amargura.
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