Comprei um carro do Delamar Gonçalves. Um flamante e possante Santana, que me faz suspirar a cada vez que o revejo, tão boa é a "nave" (hoje está com um vizinho de prédio, bem-cuidado). Detalhe: o Delamar tinha 89 anos na época e estava pensando em parar de dirigir. Pensando, mas ainda continuou conduzindo automóvel, vez que outra.
Delamar se foi semana passada. Faltavam poucos meses para completar 99 anos (até pensei que eram cem, são tantos!). Foi um homem de hábitos. Do Santana, por exemplo, era o segundo dono. Comprou de um sócio. Cuidava do carro como de um filho.
Delamar casou com Sônia Centeno, uma descendente de Bento Gonçalves, o gaúcho mais famoso a presidir a República Rio-grandense, nos nove anos que ela durou. Delamar brincava que, na falta de parentesco direto com o Gonçalves farroupilha, tratou de encontrar uma familiar dele.
Imagino como deve ter sido viver um século, Delamar. Quando nasceste o Brasil tinha recém embalado na efervescência da Semana da Arte Moderna. Um sacode nos modismos e na cultura quadradinha que vigorava até então. Com mulheres na vanguarda das pinturas, dos poemas, da dança...
Mulheres que ainda não podiam votar e só foram ganhar esse direito quando tinhas 10 anos, Delamar. Mas ainda eras pequeno para saber o gigantismo desse passo.
Já quando a II Guerra avançava e o Brasil decidiu combater o fascismo, tu foste para o Exército. Serviste na Artilharia, mas não na guerra porque eras arrimo de família. Perdeste o pai com nove anos, me contaram.
Teu genro Peter me lembra que entregavas pão feito pelo teu pai quando criança, a bordo de uma charrete. Depois foste trabalhar na Renner, na contabilidade, mas fazias teus bicos como modelo daqueles trajes bacanas.
Na época em que o Elvis começou a requebrar, tu já eras casado e a tua preferência era por outro estilo, o gauchesco. Vendedor usava terno naqueles tempos e já eras representante comercial do Biotônico Fontoura. Até prêmio pelas vendas tu levaste. Tripulavas então um Jeep, o carro da época. Depois veio a modernidade, com os Fuscas.
Chegaram os Anos 60, a Bossa Nova, a MPB, Elis e Tom, a Jovem Guarda (tu já não eras jovem), a contestação. E tu, tranquilo e sereno. Elis morreu precoce, Vinícius morreu, Tom, idem. Morreu Raul, morreu Cazuza, morreu Renato Russo. E tu, firme como uma rocha, entoando baixo o Canto Alegretense (que não eras de muitos arroubos).
A idade não te abalou. Chegaste a fazer Jornalismo na PUC, embora sem trabalhar em redação. E, surpresa! Quando já grisalho e idoso, fizeste um curso de eletrotécnico na Escola Parobé. Na hora da formatura, contaste aos colegas que uma das tuas professoras era tua filha, a Sandra.
Que vida. Eu já tinha sido convidado para celebrar contigo teu Século (assim mesmo, com S maiúsculo) pleno de existências, em setembro de 2023. Cem anos esta noite, seria a chamada. Só que partiste antes. Não faz mal. Para todos nós, foste um centenário, com plenitude.