Fui visitar uma exposição de originais de Kafka na Morgan Library, na semana passada, e saí de lá com a cabeça infestada de seres cascudos. No bom sentido.
No módulo da exposição dedicado a A Metamorfose, havia baratas subentendidas em todos os cantos. Uma delas, incorporada em cena pelo bailarino inglês Edward Watson, acabou me seguindo até em casa. A coreografia assinada por Arthur Pita (o David Lynch da dança, segundo o The Guardian) recria os movimentos e o aspecto repugnante de um híbrido entre homem e inseto de forma tão convincente e perturbadora que depois de assistir a um trecho do espetáculo na exposição fui obrigada a buscar o vídeo completo no Youtube (The Metamorphosis, no perfil Ballo Arthur Pita) — o que, ao invés de uma noite de sonhos intranquilos, resultou em uma experiência estética inesquecível.
Talvez ainda mais difícil do que imaginar um homem que acorda transformado em um bicho nojento seja tolerar a imagem de uma mulher (rica, bonita, bem-sucedida) comendo um. No conto A Quinta História, incluído no livro A Legião Estrangeira, a narradora criada por Clarice Lispector testa uma receita para matar baratas e acaba abismada pela imagem das criaturas que ela mesma, tomada por um “vago rancor”, havia transformado em pequenos monumentos de gesso. No livro seguinte, o romance A Paixão Segundo GH, a escritora volta ao tema radicalizando ainda mais a vertigem de identificar-se com o inseto, finalmente levando à boca a “massa branca da barata” ou “a coisa em si”.
A Metamorfose e A Paixão Segundo GH têm mais em comum do que as baratas. Tanto Kafka quanto Clarice Lispector desafiam o leitor a aceitar o que ele não entende, aderindo à lógica de um universo que é ao mesmo tempo familiar e estranho. David Lynch (1946 — 2025) fazia parte dessa linhagem de artistas que nos desacomodam não apenas por aquilo que mostram, mas também pelo que deixam submerso. Em seus filmes, as portas da percepção ficam sempre abertas para o que não está lá — ou está, mas apenas como resultado da combinação entre o enigma visual que o cineasta propõe e os sentidos que cada espectador constrói.
A propósito: na cena final de Veludo Azul, meu Lynch favorito, o contraste entre o idílio doméstico e todas as forças que apontam para o lado do mistério e das sombras assume a forma de um passarinho abocanhando uma barata — ou alguém da mesma família.