Lembro o valor exato do saldo na minha caderneta de poupança no dia 16 de março de 1990, quando o Plano Collor foi anunciado: zero cruzeiros e nenhum centavo. Aos 23 anos, morando sozinha e com um salário que mal dava para as contas do mês, assisti ao confisco da poupança com a serenidade emocional de quem não estava diretamente envolvida no problema.
Muitos não tiveram a mesma sorte. Para quem estava guardando dinheiro para viajar, comprar uma casa, fazer uma cirurgia, pagar a faculdade, fechar um negócio ou apenas sentir-se um pouco mais seguro diante de um imprevisto, o Plano Collor foi devastador – e não doeu apenas no bolso. Quando uma instância com poder coercitivo se coloca entre você e seus planos ou sonhos a dor é antes de tudo moral. Depois do trauma de 1990, o consenso que se formou em torno do assunto foi tão grande que uma emenda constitucional de 2001 proibiu a edição de medidas provisórias que sequestram bens, poupança e outros investimentos. Desse tiro ninguém mais morre.
Seria um enorme avanço civilizacional se a maior violência contra o livre-arbítrio aninhada na nossa Constituição provocasse o mesmo tipo de indignação: a restrição do acesso ao aborto legal e seguro aos casos de estupro, feto anencefálico e risco de vida para a mãe. Não é preciso ter um útero para entender por que um procedimento realizado por dezenas de milhares de brasileiras a cada ano (ricas e pobres, crentes e sem religião, casadas e solteiras, mães de família, adolescentes e um número indecente de crianças) é uma questão grave de saúde pública. Ainda assim, a maioria dos homens parece se dar ao luxo de manter a “serenidade emocional” diante do problema. Para surpresa de zero pessoas, partiu de uma mulher a manifestação mais consistente sobre autodeterminação feminina e direitos fundamentais envolvidos na decisão de interromper uma gravidez.
“A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas”, escreveu a ex-ministra do STF Rosa Weber em seu histórico voto a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
Essa porto-alegrense discreta e corajosa, que completa nesta segunda-feira (2) 75 anos, entra para a História como a Rosa que fala – mas apenas nos momentos certos. Bate outra vez com esperanças o meu coração.