Cresci vendo Hitchcock como um velhinho bonachão que gostava de aparecer de relance no começo dos filmes que dirigia. Adulta, tive uma epifania estética assistindo pela primeira vez no cinema a Um corpo que cai (1958) – filme que recentemente desbancou Cidadão Kane (1941) no topo do ranking das obras-primas mais amadas pelos críticos. Há algum tempo, veio à tona o fato de que Hitchcock, além de gênio, era cafajeste. Não apenas dava em cima das atrizes como perseguia as que não lhe davam assunto. Fui obrigada a rever minha fantasia a respeito do velhinho bonachão, mas não o que sinto e penso com relação aos seus filmes. Que a história julgue os homens, que o mérito defina o destino da arte.
Corta para 2016. Uma frase de Bernardo Bertolucci colocou em chamas a internet nos últimos dias. Em uma entrevista antiga que voltou a circular, o diretor italiano admite que se sente culpado pela forma como tratou Maria Schneider (1952-2011) durante as filmagens de Último tango em Paris (1972), principalmente por não ter combinado com a jovem atriz todos os detalhes da famosa "cena da manteiga".
Uma declaração a respeito de uma sequência testemunhada por toda a equipe de filmagem (alguns ainda vivos e atuantes) foi interpretada equivocadamente como uma confissão pública de violência sexual. A própria atriz costumava referir-se ao episódio em outros termos que não estupro ou abuso sexual – e sempre no campo profissional, como algo desconfortável imposto à personagem, e não a ela. Em resumo: um diretor idiossincrático, mas que agiu às claras, foi confundido com um diretor canalha, como Hitchcock, que tirava proveito da própria posição para coagir e impor-se sexualmente.
Se vamos debater gênios abusivos, como parece ser o caso de Bertolucci, sentem, que a conversa é longa. No cinema, no teatro, na música, na pintura, na literatura são muitos os exemplos de criadores que, em nome da arte, cometeram atos moralmente condenáveis ou discutíveis, seja empregando violência psicológica e/ou física para alcançar determinado efeito, seja usando episódios da vida alheia como matéria de inspiração. O sofrimento de uma pessoa vale uma obra-prima? Eis uma questão tão boa, que vem sendo discutida desde os tempos das pirâmides.
O que assusta, no caso Bertolucci, não é que algumas pessoas acreditem que o diretor passou dos limites, mas que o tribunal da internet tenha julgado seu comportamento a partir de informações incompletas ou falsas, apimentadas por títulos chamativos e ampliadas em escala global sem a devida preocupação com o esclarecimento dos fatos.
Se um episódio testemunhado por várias pessoas gera esse tipo de ruído, é de se imaginar quantas opiniões assentadas em terreno movediço têm embasado as mais ardentes convicções com relação a temas que impactam bem mais diretamente as nossas vidas.