A história de Thelma e Louise é centrada em melhores amigas capazes de fazer tudo para salvar uma à outra dos perigos do machismo, representados por tentativa de estupro, assédio, roubo. Thelma Dickinson (Geena Davis) e Louise Sawyer (Susan Sarandon) viajam de carro e se instalam em uma cabana de pesca nas montanhas durante um fim de semana, para dar uma pausa às suas existências sombrias no Arkansas — só que o passado as persegue e o futuro sempre as coloca como suspeitas.
Nenhuma mulher consegue ser livre sem ser julgada ou malvista, nem em um bucólico domingo.
Lembrei-me desse clássico cult de Ridley Scott, de 1991, ao ler Da sempre tua, novo livro das escritoras gaúchas Claudia Tajes e Diana Corso. A obra do selo Arquipélago terá lançamento neste sábado (9), às 17h, no Goethe-Institut Porto Alegre (rua 24 de Outubro, 112).
Não sei definir quem é Thelma, quem é Louise entre as missivistas Claudia e Diana. Ambas carregam características das heroínas da estrada, em especial a explosão, o desabafo de que não aguenta mais viver em estado de culpa — esse café açucarado, com dez colheres, que fica melado no fundo da xícara, como bem descrevem.
Mas não importa tanto definir quem escreve o quê, temos entre as duas a aparição de uma terceira força anímica: a amizade feminina.
Não é um livro de Claudia Tajes e Diana Corso, e sim da amizade descrita a partir delas, amálgama das experiências de porta-vozes de uma geração na faixa dos sessenta anos, que tudo viu e tudo superou.
A cumplicidade exposta é profundamente dessemelhante à amizade masculina. Homem foge de grandes temas reflexivos e metafísicos, a não ser que esteja adoecido ou perto da morte. Confissão para ele é como consulta médica — não existe prevenção, só procura quando já é tarde.
Então, existe meu choque ao ler a troca de observações. O que elas falam jamais seria objeto de uma conversa minha com um amigo. São sutilezas do cotidiano levadas ao extremo da atenção.
A concentração máxima produz poesia e beleza, porém tem um efeito colateral: nada passa despercebido por elas. Analisam-se com um rigor desmedido, não se poupando em sarcasmo e autocrítica. Destroem-se mutuamente, e se reconstroem a toda hora.
Como se testemunhássemos um processo de fagocitose na linguagem: não param de reconhecer organismos invasores à própria felicidade, dispostas a extingui-los imediatamente.
Talvez esse seja o ponto central da narrativa de 45 cartas, entre as iniciais C. e D.: a impossibilidade de praticar a distração.
Você já percebeu que a mulher jamais pode ser distraída? Precisa olhar para os lados quando está na rua, transmitir sua localização quando entra num aplicativo de transporte, dizer aonde vai quando parte sozinha a um evento. É como se não pudesse se desligar nem por um minuto da sua segurança, numa eterna culpabilização da vítima. Se acontece algo de ruim, é comum pensar que ela não se cuidou o suficiente.
No epílogo de Diana Corso, ela mata a charada: a atenção feminina é uma imposição da sociedade patriarcal, em que a mulher é condicionada a se defender de inimigos invisíveis.
“Querendo ou não, ficamos cada vez mais conscientes de que aquela personagem da mãe sempre atenta e incondicionalmente amorosa é uma fantasia, principalmente infantil e masculina.”
Num fio invisível percorrendo o subterrâneo da trama de confidências, nota-se a dificuldade do encontro presencial das autoras-personagens. Porque, diferentemente dos homens, preocupam-se com a agenda familiar.
Mesmo quando estão de folga do trabalho, não recebem folga da família. Os prazeres da convivência permanecem subjugados ao tempo que sobra do casamento e da maternidade.