A imagem de crianças cativantes fantasiadas de bichinhos tomando leite ao som de uma música infantil que caiu no gosto até dos adultos não foi a única herança deixada pela Parmalat. Ao instalar no Rio Grande do Sul a maior planta da empresa no país, a multinacional italiana adotou estratégias de logística até então pouco comuns no Estado. Foi assim que os chamados atravessadores começaram a atuar no setor leiteiro gaúcho.
Quando chegou ao Estado em 1993, ao comprar a antiga Lacesa, a Parmalat encontrou um mercado dominado por cooperativas que industrializavam uma produção menor do que a capacidade instalada.
- Para expandir na velocidade que a marca exigia, precisava ter matéria-prima - lembra Gilberto Kny, presidente da Cooperativa Piá.
A estratégia adotada foi comprar o leite diretamente de produtores e, assim, garantir o volume necessário. Para tornar viável a operação, a Parmalat terceirizou a logística, sem se envolver com o transporte do leite das propriedades até sua planta industrial. Foi quando os freteiros, até então motoristas autônomos que apenas transportavam o leite, perceberam que havia espaço para explorar aquele mercado.
- Esse freteiro autônomo se tornou também vendedor de leite ao tomar conta de rotas de produção e negociar o produto diretamente com Parmalat e Elegê, que dominavam o mercado gaúcho na época - conta o diretor de uma outra cooperativa gaúcha, que prefere não ser identificado.
Nascia o leilão do leite gaúcho, com a premissa de que "quem paga mais leva", lembra Clóvis Marcelo Roesler, presidente da Associação das Pequenas Indústrias de Laticínios (Apil). Hoje, o atravessador transporta 10% do leite no Estado. O restante fica sob responsabilidade de caminhões-tanque de cooperativas e indústrias, próprios ou terceirizados. Nesses casos, os transportadores recebem apenas pelo frete e não pela venda do produto.
Informações de dirigentes de empresas dão conta de que a própria Parmalat teria incentivado os transportadores a investirem em resfriadores. Quase 20 anos depois, os atravessadores que vislumbraram uma forma de se tornar empresários foram alvo da operação que denunciou a fraude do leite no Rio Grande do Sul neste mês. O esquema de adulteração do produto, com adição de água e ureia com formol, antes da chegada à indústria, resultou numa das piores crises do setor leiteiro gaúcho.
Modelo compromete a assistência técnica
Com as dificuldades financeiras da Parmalat, no começo dos anos 2000, os atravessadores que dominavam rotas de produção foram forçados a buscar novos mercados para se estabelecer. O assédio foi sobre produtores associados a cooperativas.
Embora o cerco seja bem menor hoje, parte dos produtores ainda prefere entregar o leite ao mercado spot - no qual os atravessadores compram e revendem o leite livremente, seja para indústrias ou cooperativas.
- Os produtores podem até conseguir um preço melhor vendendo dessa forma mas, em contrapartida, não recebem nenhuma assistência técnica. Sem contar que a segurança alimentar não é prioridade dos transportadores - argumenta Gilberto Kny, presidente da Cooperativa Piá.
Um ex-gerente da Parmalat no Estado, que prefere não se identificar, lembra que o surgimento dos atravessadores no mercado gaúcho deu-se à medida em que a concorrência pelo leite aumentou.
- As cooperativas só vendiam o excedente de leite. E os atravessadores ganharam força quando o leite passou a ser um grande negócio - lembra.
Quanto à terceirização do transporte, o ex-gerente diz que o sistema foi implantado como forma de profissionalizar o mercado.
- Mas a Parmalat sempre prestou assistência técnica. A empresa nunca quis que o vínculo com o produtor fosse por meio do atravessador - argumenta.
Sobre o eventual incentivo da Parmalat a transportadores investirem no mercado spot de leite, o ex-gerente afirma desconhecer.
- Mas, independentemente do leite vir de atravessador ou direto do produtor, cabe à indústria avaliar a qualidade do produto que recebe - diz.
Relação produtor e indústria mais forte
A relação direta entre o produtor de leite e a indústria deverá ser reforçada com a Operação Leite Compen$ado, que resultou em prisões no Estado e lançou suspeita sobre a qualidade do leite gaúcho. Embora desempenhe uma atividade lícita reconhecida pelo Ministério da Agricultura, o atravessador tende a perder espaço à medida em que as indústrias reduzirem as compras nesse mercado.
- Sabemos que há pessoas sérias nessa atividade. Mas, em razão da fraude, inevitavelmente as indústrias irão diminuir a compra de leite de atravessadores - admite Wilson Zanatta, presidente do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (Sindilat-RS).
A prática dos atravessadores de leite, que ganhou força na década de 1990 com a concorrência no mercado de leite após a chegada da Parmalat, é apontada também como uma das responsáveis pelo enfraquecimento da assistência técnica aos produtores rurais e, consequentemente, redução da qualidade do alimento.
- Essa prática se mostrou nada eficiente. Temos de voltar a priorizar a relação direta do produtor com a indústria. O transportador deve receber apenas pelo frete - afirma Elton Weber, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado (Fetag-RS).
Hoje, a relação direta com o produtor é meta da maioria das cooperativas, que buscam o leite direto nas propriedades. Nas indústrias, a origem do abastecimento ainda é dividida por causa do déficit de produção gaúcha.
Marcos históricos
As principais transformações na indústria leiteira gaúcha
- Anos 1980: Cooperativa Central Gaúcha do Leite (CCGL) domina o mercado gaúcho, com 70% da industrialização.
- 1993: a Parmalat chega ao Rio Grande do Sul, com a maior fábrica do país, em Carazinho.
- 1995: adesão ao transporte a granel, em caminhões-tanque. Disseminação de tecnologias como inseminação artificial e ordenha mecânica.
- 2000: linhas de crédito com prazo e juros menores para os produtores, além do uso de resfriadores de expansão (tanques de inox).
- 2004: fechamento de setores produtivos da Parmalat no Estado e surgimento de novas indústrias de laticínios.
- 2008: instalação de fábrica da Nestlé em Palmeira das Missões.
- 2010: após arrendar a antiga unidade gaúcha da Parmalat, a Nestlé compra a fábrica de Carazinho.