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Escritor e pesquisador francês, Michel Desmurget ficou furioso quando percebeu um certo endeusamento da sociedade sobre o uso de telas por crianças. Diante disso, o autor de A Fábrica de Cretinos Digitais e Faça-os Ler!, ambos publicados no Brasil pela Editora Vestígio, assumiu uma missão.
Ele busca mostrar, de um lado, estudos que esmiúçam os riscos do consumo de aparelhos como celulares e tablets para um cérebro em desenvolvimento, e, de outro, os benefícios do hábito da leitura como forma de treinar a cognição, que não apenas traz bons resultados no desempenho escolar, mas estimula a inteligência emocional, como a capacidade de entender a si mesmo e aos outros.
Fiquei furioso ao perceber a enorme lacuna entre o que a literatura científica dizia sobre o impacto das telas e as informações imprecisas difundidas na mídia.
MICHEL DESMURGET
Confira a entrevista:
Por que você decidiu estudar o impacto do uso de telas nas crianças?
Este é um problema de saúde pública. Como neurofisiologista, sei que o desenvolvimento do cérebro depende de como ele é "alimentado". Fiquei furioso ao perceber a enorme lacuna entre o que a literatura científica dizia sobre o impacto das telas e as informações imprecisas difundidas na mídia.
Há alguns anos, videogames violentos eram exaltados, e redes sociais eram vistas como benéficas para o aprendizado. A discrepância era absurda. Não sabemos tudo, mas sabemos bastante, e o que estava sendo propagado não correspondia às evidências científicas.
Felizmente, as pessoas estão mais conscientes, pois os efeitos começaram a ficar visíveis – como aconteceu com a mudança climática. No início, muitos ignoravam o problema, mas, diante de imagens como as do Mont Blanc perdendo gelo após séculos, a realidade se impôs. O mesmo ocorre com as telas: o discurso otimista está desmoronando diante dos fatos.
Quais os desafios ao educar crianças em uma sociedade cujo uso da inteligência artificial é crescente?
O problema das telas segue a mesma lógica. Quando damos um tablet a uma criança ou adolescente, esperamos que seja usado para algo produtivo, como leitura ou aprendizado. Mas todos os estudos mostram que isso raramente acontece. Em vez disso, passam horas assistindo a vídeos no TikTok, Netflix ou jogando games violentos.
Isso é natural, pois essas plataformas foram projetadas para estimular o sistema de recompensa de forma irresistível – um livro nunca competirá com a Netflix nesse aspecto. Com a inteligência artificial, ocorre o mesmo.
Ela pode ser uma excelente ferramenta para ajudar a resolver problemas, mas, na prática, crianças e adolescentes a utilizam para que ela faça o trabalho por eles. Isso gera dois problemas: primeiro, a IA pode errar; segundo, mesmo quando acerta, o estudante não aprende nada. Se não treinamos o cérebro, ele não evolui. O risco é que, coletivamente, fiquemos cada vez mais dependentes da IA, enquanto ela se torna mais inteligente.
O importante não é que o ChatGPT resolva um problema de matemática, mas que os estudantes compreendam o processo. A menos que queiramos uma sociedade onde sejamos o mais burros possível.
MICHEL DESMURGET
Em algum momento, podemos não entender mais nada do que ela diz. O importante não é que o ChatGPT resolva um problema de matemática, mas que os estudantes compreendam o processo. A menos que queiramos uma sociedade onde sejamos o mais burros possível, sem entender nada e apenas perguntando ao ChatGPT para fazer tudo por nós – e não acho que essa seja uma boa perspectiva.
Recentemente, o Brasil aprovou lei proibindo o uso de celulares nas escolas, inclusive durante o recreio. Que mudanças podemos esperar nesses indivíduos como resultado dessa proibição? Proibir é uma boa ideia?
Proibir é sempre a última solução, mas o uso dessas tecnologias está escrito no nosso cérebro. Se eu encontro uma informação no ambiente – algo se moveu ali, é uma presa? É algo que pode me matar? Ou é só o vento? –, recebo uma recompensa: uma pequena dose de dopamina.
Se temos uma interação social positiva, nossos cérebros também recebem uma pequena recompensa. Sempre que alguém diz "você é bonito, inteligente, gentil" – exatamente o que os "likes" fazem nas redes sociais – você recebe uma pequena dose de dopamina. E os celulares amplificam isso.
Há estudos mostrando que adolescentes, mesmo sem receber nenhuma notificação ou som, olham para o celular de 200 a 300 vezes por dia. É o que os americanos chamam de "FOMO" (medo de ficar de fora). Apenas o fato de o celular estar na mesa, desligado, reduz sua capacidade de entender e memorizar uma aula.
Se você está na universidade e há alguém ao seu lado usando o celular, seu cérebro pensa: "Essa pessoa pode ter uma informação que eu não tenho." Isso atrapalha sua concentração. Mesmo que você tente focar, seu cérebro diz: "Ei, você pode estar perdendo algo." Além disso, há essa ideia de que as novas gerações conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Isso é um mito.
há essa ideia de que as novas gerações conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Isso é um mito.
MICHEL DESMURGET
O cérebro só pode fazer uma coisa por vez. Se um aluno usa o celular durante a aula, é um desastre. Não há um único estudo que demonstre um efeito positivo do uso do celular em aula. No máximo, alguns mostram que não há efeito nenhum – mas a maioria aponta prejuízos. Sobre a proibição, o cérebro jovem é muito mais sensível a esse tipo de estímulo. Se você tem a minha idade, seu cérebro já está formado.
Mas, para os jovens, a exposição excessiva pode causar disfunções no sistema de recompensa, o que está ligado à aprendizagem e a vários tipos de vícios. É como o álcool. Todos aceitam que há uma idade mínima para beber, porque sabemos que o impacto no cérebro jovem é mais prejudicial do que no cérebro adulto. Com as telas, acontece o mesmo. Por que não tomar medidas para proteger os jovens?
Por que a leitura é melhor para o cérebro de uma criança do que, por exemplo, assistir a um bom filme ou usar outras ferramentas pedagógicas digitais?
Ninguém discute que alguns filmes são obras de arte, mas não é a mesma coisa assistir a um filme de vez em quando e se afundar em vídeos, séries da Netflix e outras coisas estúpidas. Estudos compararam crianças que leem bastante e assistem pouca televisão ou filmes com crianças que assistem muitos filmes e séries e leem menos.
Há uma grande diferença nos resultados escolares, no vocabulário e no conhecimento geral. Mesmo considerando um documentário educativo, há dois fatores principais que explicam a superioridade dos livros. O primeiro é a riqueza da linguagem. Quando falamos, podemos simplesmente mostrar uma imagem e não precisamos descrever nada.
Estudos mostram que até os livros infantis contêm mais vocabulário e estruturas gramaticais mais complexas do que qualquer conversa oral.
MICHEL DESMURGET
Estudos mostram que até os livros infantis contêm mais vocabulário e estruturas gramaticais mais complexas do que qualquer conversa oral. O segundo fator é a profundidade do processamento cognitivo. A leitura permite um nível mais profundo de compreensão porque você pode voltar ao texto, reler, desacelerar quando necessário. O cérebro processa a informação de maneira mais detalhada quando lê do que quando apenas ouve ou assiste a um vídeo.
Um estudo interessante mostrou que, ao ouvir a frase “Que tipo de animal Moisés levou para a arca?”, muitas pessoas não percebem o erro (pois foi Noé, não Moisés). Mas, quando a frase é lida, o erro é notado muito mais facilmente, demonstrando que o processamento da leitura é mais profundo. Quanto mais complexo o conteúdo, maior a vantagem da leitura sobre a mídia audiovisual. Os filmes podem complementar, mas nunca substituir. Você parece jovem. Você lê?
Sim, sou uma leitora. É difícil para mim ler tanto quanto lia na adolescência, mas estou me esforçando para ler mais.
Isso mostra que o ambiente atual não favorece a leitura. Mas o interessante na sua história é que, quando alguém constrói uma base sólida de leitura na adolescência, mesmo que pare por um tempo, essa habilidade continua presente. O problema é para aqueles que não constroem essa base.
Se uma pessoa não desenvolve o hábito da leitura durante os anos escolares e a adolescência, será extremamente difícil se tornar um leitor fluente depois. Isso acontece porque a leitura exige familiaridade com a linguagem dos livros. Se uma pessoa desconhece mais de 2% das palavras de um texto, ela não consegue compreendê-lo. E muitas dessas palavras não aparecem frequentemente na linguagem oral.
As pessoas subestimam brutalmente o impacto positivo da leitura. Há uma revisão da Academia Americana de Pediatria que discute como podemos prever os resultados escolares a longo prazo e o desempenho profissional de uma criança. O melhor fator preditivo é a habilidade de leitura no primeiro ou segundo ano escolar, e isso não se aplica apenas ao inglês, espanhol ou filosofia, mas à matemática. É um fator crucial para o desempenho escolar, mas não apenas para isso – também para a inteligência social, que é frequentemente ignorada.
A leitura permite simular experiências de vida que você talvez nunca tenha, mas ainda assim aprender muito com elas.
MICHEL DESMURGET
Empatia e capacidade de compreender os outros são habilidades essenciais. Há uma enorme quantidade de estudos, que começaram há cerca de 20 anos, mostrando que quanto mais você lê, em comparação com quem assiste mais televisão ou filmes, maior é sua inteligência social, sua compreensão de si mesmo e dos outros e seu grau de empatia.
Vamos pegar Jogos Vorazes, por exemplo. No livro, você entra na mente de Katniss Everdeen. Ela descreve o que pensa, por que age de determinada maneira, seus medos, suas esperanças. A leitura permite simular experiências de vida que você talvez nunca tenha, mas ainda assim aprender muito com elas. Quando a personagem experimenta uma emoção, os estudos mostram que as mesmas áreas do cérebro do leitor são ativadas.
Eu sou Katniss quando estou lendo sobre ela.
Sim! Você pode ser Katniss no livro, mas não pode ser Katniss no filme, porque no filme ela já tem uma encarnação, uma interpretação específica. Mas, quando você lê, você entende e sente o que ela sente. É por isso que os livros têm um impacto tão grande na empatia e no que chamamos de "teoria da mente" – a capacidade de compreender os outros e a si mesmo.
Isso é importante para a cognição, para a inteligência no sentido comum do termo, mas é ainda mais essencial para a inteligência social e emocional. A leitura nos torna mais humanos.
A má notícia é que um estudo realizado no ano passado mostrou que, pela primeira vez, os não leitores são maioria aqui no Brasil. Como podemos reverter essa situação?
Isso está acontecendo em todo o mundo. E, se olharmos de perto, o que esses estudos chamam de "leitores", às vezes, é qualquer tipo de leitura. Você lê um livro de receitas? Pronto, você é um leitor. Mas, se analisarmos apenas aqueles que realmente leem livros, romances, quadrinhos ou qualquer outro tipo de literatura, os números são ainda menores.
A leitura e o aprendizado da leitura exigem esforço, mas o primeiro passo não deve ser impor uma obrigação. Sabemos que ler é útil para a vida da criança, mas dizer a ela: "Se você ler bastante, terá boas notas e um bom emprego" é inútil. A única maneira de desenvolver a leitura é através do prazer. Sem prazer, não há leitores. E o maior inimigo do prazer é o fracasso.
A escola ensina a decodificação, mas a transmissão da linguagem e do prazer da leitura vem principalmente da família. Por isso, é essencial ler com a criança.
MICHEL DESMURGET
O pior método é dar um livro para uma criança de seis anos e dizer: "Agora você vai aprender a ler na escola". Se ela não tiver um repertório linguístico, a leitura será uma experiência frustrante. A leitura é algo que depende muito da família. A escola ensina a decodificação, mas a transmissão da linguagem e do prazer da leitura vem principalmente da família. Por isso, é essencial ler com a criança. (...)
Então, desde o nascimento, comece a ler para a criança. Pode parecer inútil ou absurdo ler para um bebê de três meses, mas os estudos mostram que é extremamente eficaz. Isso estimula o cérebro com uma linguagem mais sofisticada, especialmente em termos de sintaxe e gramática. O erro que os pais cometem é parar de ler para a criança quando ela entra na escola.
No primeiro ano escolar, as crianças começam a aprender a decodificar, e há uma confusão entre decodificação e leitura. Decodificação é transformar sinais em sons e palavras. Isso leva tempo. Por isso, as crianças precisam continuar ouvindo histórias sendo lidas para elas, para que continuem aprendendo a linguagem dos livros enquanto ainda estão desenvolvendo suas habilidades de leitura.
Aprender a ler é frustrante! Há muito esforço envolvido. Por isso, podemos reler os livros com elas ou incentivá-las a ler sozinhas, começando com cinco ou dez minutos por dia. Mas também é essencial continuar lendo com elas. Isso mantém o prazer da leitura vivo.
Até quando é importante manter a rotina de ler junto com a criança?
Não pare até o final do Ensino Fundamental. Nesse período, é importante dar à criança alguns livros que sejam muito fáceis e alguns muito difíceis. Se todos forem difíceis, ela não entenderá nada e será frustrante e inútil. Se for fácil demais, ainda haverá algumas palavras que a criança não conhece, e ela poderá entender pelo contexto e apreciar a história. Mas, se você continuar lendo com ela, poderá trazer algumas coisas mais difíceis que ela não conseguiria ler sozinha. (...)
É bom ter alguns rituais. Como: "Ok, são oito horas agora, pessoal. 15 ou 20 minutos de leitura." Então, todos paramos e sentamos no sofá para ler. Para colher os impactos positivos da leitura, você não precisa ler cinco horas por dia. Algo entre 20 e 30 minutos por dia tem um impacto enorme a longo prazo. Um pouco todos os dias. A segunda mensagem é: dê a ela uma identidade de leitor.
Você me disse: "Sou uma leitora." Isso significa que você incorporou isso em sua identidade, no modo como se vê. E isso é transmitido pela família. Há um estudo com dois gêmeos exatamente iguais. Um vive em uma casa onde há muitos livros e o outro em uma casa onde não há livros. O que vive na casa com livros terá, ao final, três anos e meio a mais de escolaridade. Mas não é porque há livros na estante: é porque quando há livros em casa, significa que os pais leem, que a criança verá os pais lendo e há uma chance maior de que os pais leiam para a criança. E, claro, significa que os livros são importantes. (...)
O pior que se pode fazer é dizer: "Você vai ler por 15 minutos e depois pode ver Netflix ou jogar videogame", porque isso transforma a leitura em uma punição. O tempo de tela está destruindo os cérebros das crianças. Quando estamos entediados, o cérebro trabalha as áreas da memória e da resolução de problemas.
Se a criança está entediada e tem Netflix, ela vai usar Netflix. Se a criança está entediada e tudo o que tem é um livro, um instrumento musical ou qualquer outra coisa que você queira que ela tenha, então ela usará isso.
Então, depois de dar uma identidade de leitor e ler com prazer, o terceiro passo é criar um ambiente onde a criança possa ler, porque se as telas estiverem disponíveis o tempo todo, esqueça: ela não vai ler. Esses três passos não são garantia de sucesso, mas são importantes para formar um leitor.
Dar esses três passos deve exigir esforço dos adultos, em especial quando eles não têm o hábito da leitura.
Isso é verdade. Ninguém diz que é fácil para os pais. Mas muitos estudos mostram que, mesmo que os pais tenham uma origem desfavorecida, só o fato de dizerem que é importante conversar com as crianças, ler com elas, já faz diferença. Há um estudo em que deram livros para pais que nem sabiam ler e disseram a eles: "Apenas leia as imagens e finja que está lendo."
E o impacto no desenvolvimento das crianças, em termos de atenção, linguagem e vínculo emocional entre pais e filhos, foi significativo. Esse estudo mostrou que simplesmente levar essa informação aos pais mudou a vida das crianças para melhor. A questão não é dizer: "Você é uma mãe ruim, sinta-se culpada porque não está fazendo o suficiente." É apenas fornecer informações. (...)
Se fizermos um esforço específico com essas crianças de famílias desfavorecidas, podemos mudar suas vidas. O que é interessante é que, para os políticos, que sempre pensam no dinheiro, até mesmo do ponto de vista econômico, cada dólar investido nisso retorna multiplicado em termos de redução de dificuldades escolares, violência e fracasso escolar. Então, investir nas crianças é dinheiro que voltará depois, e em maior quantidade.
A mensagem é: menos telas, mais livros. As pessoas se perguntam: "Como posso mudar a vida dos meus filhos?" Algumas respostas são difíceis, mas há uma que é fácil: reduzir o tempo de tela e aumentar o tempo de leitura. Isso realmente mudará a vida das crianças. E isso está documentado. Não é uma hipótese ou desejo. É um fato.